No Balcão do Quiosque

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Oito filhos - um falecido!



Um enredo, uma odisséia, um folguedo ou apenas uma mania?

Sinceramente não sei mais o que fazer com essa mania de criar blogs. Tenho sete blogs e um falecido (que loucura)... E perguntem se dou conta – claro que não né?
Olha só, tudo começou com o filho mais velho – ESCRITOS NA MEMÓRIA. Que atualmente fechei pra balanço. Mas, balanço de quê vocês devem perguntar... rsrsrs .Acho que um balanço das idéias , das blogadas e imagens. Repensar layout e outros bichos.

Em seguida, engravidei do RETRATOS EM DEGRADÊ, que frutificou a partir do título de um de meus poemas. Curioso isso né? Meu segundo filho, o blog da vez. Ele é bem freqüentado, hospeda muitos leitores , amigos, simpatizantes e alguns dissidentes (que eu sei!) rssssssss, mas mesmo assim, a paisagem do meu retrato continua firme e forte. ROSA CHOQUE – NÃO PROVOQUE!

Depois eu inventei um blog de estética que eu nem lembro o nome porque logo acabei com ele. Mas a idéia continuou fluindo nessa louca e desvairada cabecinha blogueira. Atualmente, esse filhote saiu da casca e desfila em figurino azul claro e flores no olhar. Seu nome é sensibilidade: PELE E FLOR.

Mas vejam só, após o rosa choque que é degradê eu dei a luz ao terceiro filho, o LA FEMME, um blog ousado na cor despojada do azul no preto. Lindíssimo e escultural. Lotei o blog de imagens azuis e tal. A idéia desse blog era escrever a releitura da obra de Roberto Drummond, um escritor renomado desde os anos 70 e que ganhou o Prêmio Jabuti de Literatura pela obra que eu estava disposta a reescrever sob minha ótica. Comecei então (toda animada) a escrever a série: UM SONHO EM PARIS - que alguns amigos já leram e acompanharam. Mas que decepção! O LA FEMME não deslanchou coitadinho e morreu na maternidade, posto que ainda era um recém-nascido. Com muito pesar eu enterrei toda aquela beleza azul e preta. ( O Falecido).

E lá ficava eu atormentada com uma somatória de idéias pra lá e pra cá, até que resolvi abrir o Lu na Cozinha – meu blog culinário, o filho número quatro(que está vivo mas encarcerado). Uma verdadeira loucura ele, sabem? Travesso e endiabrado, dando um trabalho danado pra atualizar. Mas como eu tinha muita paciência com ele, ficou algum tempo no ar e cresceu, fez amigos contava muitas histórias de guloseimas, dicas pra festas e reuniões informais. Arranjo de mesa. Danadinho ele! Até comidinhas pra chá de bebê ele inventou. Mas aos poucos a geladeira foi ficando vazia, a despensa triste olhava o pouco mantimento já quase com data de validade vencida. A conta de gás atrasada, e já com a mesa toda desarrumada e a toalha cheia de migalhas... A Lu fechou a cozinha.
BUaaaaaaaaaaaaa!!!!!!!!!!


Mas não pensem que a produção parou por aí. Outra gestação, filho de número 5.
Voltando eu de uma viagem do litoral norte de São Paulo, olhando a paisagem ainda beira-mar, li uma tabuleta que dizia: QUIOSQUE DO PASTEL. Pronto, na mesma hora veio a idéia: AHHHH VOU CRIAR UM BLOG COM ESSE NOME.

Revirando os olhos eu me perguntava: “mas o que vou fazer neste blog? Não tive resposta imediata não, foi como fazer uma peça de cerâmica. Onde se senta com a coluna encaixada, estufando o peito, afastando os joelhos e a argila deslizando entre os dedos e fui assim. Comecei a moldar uma idéia: a de tornar um blog comunitário.E veio vindo aquele mundaréu de idéias e pessoas. E fui botando tudo logo no papel para não perder uma só letrinha.
Gestação feliz, parto um pouco difícil, mas com ilustres visitas e uma turma de arromba.

Nasceu então meu rebento com idéias avançadas por ser ainda tão jovem. Ele queria muita gente à sua volta, pois ali seria aberta uma casa de crônicas com pastel e o que mais viesse. E assim foi. Meu Quiosque enviou convites para um grupo alegre, inteligente, criativo e acima de tudo companheiro.
Hoje, meu grupo de quiosqueiros manda ver e arrebenta na escrita.

E assim tudo ia caminhando bem até que meu fascínio libertou outro rebento: o L’AMOUR, um filhote afrancesado chique e cheio de plumas e paetês. Glamoroso que só. Por ser quase o caçula anda meio mimado e só quer colo. Fica dormindo a maior parte do tempo. Mas deixa, que logo mais (tomara), ele acorde e comece a andar e produzir noites francesas, visitas a museus e lojas e um pouco da história de Paris.

Mas a doidivanas que vos fala pariu mais um filho, o caçula: seu nome? EMPÓRIO DO CAFÉ LITERÁRIO. Por ser o caçula deveria estar nas fraldas e mamadeira em punho. Mas não! Ele já caminha com as próprias pernas, é falante, ousado, criativo e muito comunicativo. Posto que já fez mais de 30 amigos. Até madrinha ele tem. Aliás, ele e eu devemos muito a esta madrinha que é fada madrinha; porque dias depois de seu nascimento eu ( a mãe desnaturada), abdiquei do rebento e o coloquei fora de casa, deletando-o de minha vida. Mas como a vida acha um meio quando quer sobreviver, ele foi resgatado pela madrinha Rosemari e agora é esse jovem feliz que prima pela cultura.

Dedico esse texto a meus amigos blogueiros. Texto esse que é fragmento de uma história que deve (ainda) preencher muitas páginas.

By Lu Cavichioli

Projeto Poesia Sentir - Abr/09 - E.M."J. T. Souza"-(P.Alegre MG)

Aves

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

A escada

Todos os dias eram vazios para Reustafá. Não porque fossem de todo ruins, um desprazer. Mas a impecável rotina dos dias de sempre, assim os tornavam para ele. Era como se o dia fosse republicações da mesma notícia com variações mínimas apenas nos termos. Uma repetição automática e pantomímica. Os “bom dias”, os “olás”; as mesmas calçadas por onde caminhava, os semáforos, as pessoas estacionadas nas mesmas esquinas e as que rapidamente avançavam em direção ao consumo das horas.

Reustafá gostava de ir na hora do almoço, até o parque central que ficava próximo ao seu trabalho e lá fazer a sua refeição. Sentava-se no banco diante do lago ladeado por dois pés de crisântemo campestre a lhe fazer camuflada companhia.

Do bornéu inseparável, tirava um tapewear médio onde estava sua aveia; do menor, o yogurt duro. Bastava-lhe. O que queria mesmo era admirar as uniformes crispas da superfície do lago a movimentarem-se ordeiramente como se estivessem atendendo a um invisível chamado. Isso o acalmava e lhe dava confiança.

Após o trabalho, voltava para casa sempre pela rua Voltaire. Uma rua muito arborizada e tranqüila. Essa rua desembocava em uma bifurcação: de um lado uma praça de pequena dimensão e do outro a rua do Portal. Do lado da praça, um pequeno boulevard conduzia até uma longa e larga escadaria margeada por um bem cuidado jardim. Reustafá contou 30 degraus. A sensação era que parecia ter mais de 1000. Nunca os escalou. Sempre que por ali passava propositadamente, parava diante da escadaria e admirava sua estranha imponência harmoniosa.

Olhando para cima divisava um banco de madeira com ripas horizontais todo branco e solitário na maioria das vezes. Sentia uma enorme vontade de subir a escadaria e sentar-se àquele banco. Mas um sentimento de inexplicável constrangimento, detinha-o.

Observar o banco alaranjar-se ao poente era uma experiência indefinível por palavras. Isso o embevecia. Em algumas oportunidades, essa cena era valorizada ainda mais pelo som distante de um oboé executando uma música que identificava como sendo Bnei Heichala.
Bnei... Bnei... ecoava em sua interioridade apaziguada do mundo que lhe era tão distante.
Um grupo de crianças em gritaria passou correndo por ele e o trouxe de volta a realidade — ou tirou-lhe dela.

Morava a poucas quadras dali. Sua casa era estilo grega toda branca e abobadada. Rotineiramente ao chegar em casa tomava um banho morno; vestia uma roupa de linho leve e preparava mais um prato de aveia com pão preto. Isso lhe supria satisfatoriamente. Sentava-se na varanda com piso de tábuas de madeira com uma xícara de chá de sálvia e aquietando mente e coração, ouvia ao longe o misterioso som do oboé a melodiar em ondas irresistíveis por oceanos da imaginação.

Era feriado nacional. O bairro estava vazio. Era como se quase todos os moradores tivessem saído para viajar. Sem ter para onde ir a não ser para onde seus enfastiados sentimentos o conduzisse, Reustafá pôs-se a caminhar pelas vielas do bairro até instintivamente se deparar com a escadaria. Diante dela conduziu o olhar até o banco... lá no topo. Eram 17h40 e o céu como que em oração, convidou os mais belos matizes a formarem gradientes em mesclas intangíveis entre o dourado e o préter do mais sutil violeta... comungando com seu mais solitário observador ausente de sua própria solidão. Bnei... Bnei... a melodia a soar e sua alma gigante mal cabia em seu frágil corpo.

Sem dar conta de si, lentamente deu o primeiro passo, e o segundo, e o terceiro... até parar no décimo terceiro bem diante da residência onde morava o doce som do oboé.

Como uma reverência, a melodia saiu a cumprimentá-lo como que incentivando-o a continuar a subida. E assim o fez.
Nunca olhou para trás. Seus passos grudavam nos degraus como se tivessem ímãs. Era como se fossem os degraus a puxar seus pés a dar os próximos passos.

Uma brisa suave e cálida tal qual par de mãos, puxava-o com ânimo; uma silenciosa revoada de pássaros cruzando em diagonal sua escalada, respeitou as frases do oboé.

Sem cansaço chegou ao topo. Instintivamente contou trinta e três degraus e mais um em fase terminal de construção. Olhou à sua direita e lá estava o banco alvo a reluzir a esplendorosa cromática do poente solar. Caminhou e nele sentou-se. À sua frente descortinou-se um vasto oceano dourado; um horizonte tão retilíneo quanto seus pensamentos. Tudo que observava poderia ser descrito. Somente a paz que sentia era indescritível.
Um sorriso de Monalisa tomou conta de seu semblante.

A noite avançava e com ela o fim do feriado. Os moradores do bairro retornavam e com eles a algazarra de suas viagens preenchiam de “nada” as vielas ziguezaguiantes.

De manhã cedo um grupo de funcionários encarregados da faxina local, depararam-se com um corpo enregelado sentado no alvo banco segurando em suas mãos um oboé.

— Pobre Reustafá... era um músico tão talentoso que desperdiçou sua vida na tristeza de sua solidão — comentavam os funcionários. O que será que veio fazer aqui, sentado a noite toda diante desse terreno baldio?

terça-feira, 8 de setembro de 2009

O menino e o sol.

Renato morava em uma região quente, constantemente banhada pelo sol. A chuva era parca mas o céu não economizava a dar o ar quente de sua graça em um azul profundo.
Tinha 7 anos de idade e uma idéia no mínimo curiosa: o sol, na verdade, é uma luz que passa através de um buraco no céu.

Vivia repetindo isso aos seus colegas e amigos na mais pura ingenuidade. Claro que muitos risos seguidos de muita pecha o tornavam alvo fácil do descaso geral. Mas isso não abalava aquele coraçãozinho cheio de sonhos estranhos.

O tempo foi passando e Renato dos 7 pulou para os 14 anos repleto do vigor por questionamentos não muito condizentes com sua idade. Com o rosto cheio de espinhas, mergulhava avidamente nos livros de aventuras de pesquisadores, ficção e realidades fantásticas. Enquanto isso lá fora, seus colegas chutavam bola, quebravam vidraças e mandavam recadinhos para as meninas.

Quando na aula de ciências a professora pediu uma redação de tema livre... ah, advinha o que Renato escreveu? Quando chegou sua vez de expor o seu trabalho, notou-se uma evolução de sua teoria. Estava mais elaborada. Dizia que na verdade o sol era uma luz que havia por detrás do que chamamos céu, dentro de nosso campo visual. E que esse céu azul era como uma extensa camada de gases nobres que escondia, como um biombo, um outro céu, só que nesse não havia a cor azul ou nenhuma outra cor mas, somente luz.
A professora achou o texto muito imaginativo e bem escrito porém carente de embasamento científico e mesmo plausível de comprovação lógica. Mas Renato continuava inabalável em suas convicções.

Salto no tempo e lá está Renato na universidade cursando filosofia, especializando-se em metafísica. Sempre dedicado aos estudos, a não ser pelo fato de trabalhar exaustivamente no desenvolvimento de sua insólita pesquisa que causava desconfiança nos meios acadêmicos, era tido como um aluno de grande capacidade.

Chegado o momento de defender sua tese extraordinária, Renato trabalhou 20 horas direto para deixar tudo como idealizou.
Uma platéia dispersa e inquieta aguardava a sua apresentação.
Renato subiu ao palco como último expositor acadêmico. Irradiava uma força de convicção a qual ninguém escapou de seu contágio. Silêncio na platéia. Renato falava. Não. Mais do que a fala, Renato tocava a cada um com encadeamento lógico irretorquível.

Embasbacados, os presentes àquele marcante acontecimento, hipnotizados pela verve que fluía como água da fonte através da boca daquele homem que parecia por fim às limitações da lógica humana, sentiam dentro de si que algo extraordinário aconteceria a qualquer instante.
E aconteceu. Renato após proferir a última palavra, caiu. Caiu como se cai um tronco após decepado. O que o decepou ? Sua exaustão fruto de uma obsessiva busca por algo que somente ele sabia com tanta certeza ? Fraqueza ? Não importa o motivo, o fato é que rapidamente o levaram para a enfermaria e lá tentaram reanimá-lo, sem sucesso.

Correria total. Colocaram-no no carro do diretor e voaram depressa para o hospital. Resultado: UTI. Seu coração inspirava cuidados extremos.
Certa noite, o médico de plantão ao visitá-lo, o encontrou acordado.

Aproximou-se e lhe dirigiu algumas palavras:

— Olha só quem está de volta! E aí meu amigo, tudo bem?

Renato o olhava direto nos olhos de maneira intensa e profunda. Seu rosto irradiava serenidade.
O médico percebeu sua feição e se aproximou para auscultar-lhe o coração com o estetoscópio. Não conseguiu encostar o aparelho no peito de Renato. Um calor anormal subia até o rosto do médico que num ato reflexo se afastou tentando disfarçar o ocorrido.
Renato sensível e perspicaz como era, olhando firme para o médico disse-lhe:

— Dr. Por favor, se aproxime.

O médico se aproximou de Renato. Sentia ainda a forte radiação de calor.

— Encoste sua mão no meu coração.
Constrangido ao ouvir o que lhe disse, o médico esforçando-se por manter uma aparência de controle, vagarosamente encostou a mão no coração de Renato.

O extraordinário acontece. Ao tocar no ponto cardíaco, o forte calor passou para uma sensação de extremo relaxamento. Uma paz imensa envolveu o ambiente. O médico como quem acabou de levar um choque rápido, tirou a mão de forma ágil e abrupta do peito de Renato. Suava em bicas. As mãos tremiam. Tudo isso fruto de única reação: medo. Medo intenso lhe corria pelas vértebras. Acabara de ter naquele instante um flash visionário.

Saiu às pressas do quarto e em passos rápidos dirigiu-se para a ala reservada ao descanso dos médicos.
Estava ofegante. Pensou em tomar um calmante. Mas um sentimento estranho à sua profissão o impediu de fazê-lo. Sentou-se e tentou colocar os pensamentos em ordem. De formação rigidamente científica, sua mente cartesiana dificilmente encontraria resposta satisfatória e lógica para o que havia acabado de vivenciar.


Passaram-se 6 dias e Renato teve alta. Emagrecera 5 quilos. Seus pais o levaram para casa. Cuidaram e mimaram o filho como todos os bons pais fazem mesmo que os filhos possam ter 60 anos. Arrumaram com alegria o antigo quarto que lhe pertencera antes de se mudar para o apartamento que dividia com mais dois amigos de faculdade. Sua personalidade por demais fora dos padrões burgueses, acabou por determinar que deixasse os amigos e fosse morar sozinho. Isso para Renato foi um bálsamo. Podia dessa forma, se dedicar ao máximo à suas pesquisas metafísicas.

A janela do seu quarto dava para um pequeno pomar que seu pai, um apaixonado pela natureza, gostava de cultivar. Dali se via o pessegueiro com seus ramos de coloração marrom, indicativo do avançado do tempo que aquela árvore tinha alcançado, que próximo ao quarto, espargia seu fragor envolvente por todo o ambiente.

Renato passava longo tempo à janela a admirar o cuidado e carinho com que seu pai se dedicava às árvores e jardim de sua casa.
Divagava em seus pensamentos ao sabor de uma gostosa brisa que anunciava o fim de tarde quando teve um insight:
Uma ilusão é como uma semente: você planta e ela pode germinar e dar frutos ilusórios. Sua fome por realidade nunca será saciada. Não cuide de uma ilusão como se fosse nutrir sua alma.

A campainha da casa tocou. Seu pai atendeu.

— Filho! É para você.

Para mim? Quem será? — pensou. Era o médico plantonista que o atendera na UTI querendo saber notícias de sua recuperação.
Renato pressentiu que aquela visita inesperada era mais do que uma simples visita de médico. Pensava: como esse médico descobriu meu endereço?

— Esse é o Dr. Ramires. Veio especialmente saber de seu estado de saúde — Disse meu pai ingenuamente.

Dr. Ramires se aproximou olhando firme para Renato.
Os dois apertaram as mãos sem desviar os olhos.

— O Sr. aceita um cafezinho? Perguntou o pai.
— Sim obrigado.
— Sente-se. O que o trás aqui Dr.? — dispara Renato, sem rodeios.
— Olhe, está fresquinho. Aqui tem açúcar e adoçante. Fique à vontade, Dr. — Interrompe a mãe toda orgulhosa por uma visita ilustre.
— O que aconteceu naquela sala de UTI? Devolve de forma direta o médico.
— Descreva-me o Sr. — rebate Renato.

O médico levanta em silêncio, dá uns passos pelo quarto com as mãos cruzadas para trás como se estivesse algemado. Pensa na melhor forma de expressar o que havia experienciado naquele hospital.

— Não conseguiria descrever o que vivenciei naquele momento. Mesmo se tenta-se, o máximo que me viria à mente seria como estar em um imenso vácuo onde só luz era o que predominava. O que você fez? Você possui algum dom especial? Algum poder extraordinário de fazer com que as pessoas entrem nessa espécie de transe...

— Espere aí Dr. — Interrompe Renato, impedindo o médico de dar um rumo à conversa que já ia se distanciando do que realmente importava — Eu não sou nenhum hipnotizador, não tenho nenhum desses poderes que a mim você apregoa; também não desenvolvo nenhum tipo de prática, posturas, imposição de mãos ou seja mais o que você possa pensar. Está longe disso. O que posso lhe assegurar, e isso não tenho como provar-lhe segundo um racionalismo pragmático e científico, é que tudo o que você ”viu” possui uma base de realidade tão sólida quanto é o chão que agora nos apoiamos. Apenas sei porque algo em mim sabe.

— Diga-me. O que “vi” é externo ou tudo se passou no meu âmbito interno? Quero dizer: estive realmente em algum lugar determinável no tempo e espaço?

Nesse momento Renato não se conteve e soltou uma sonora gargalhada como a muito tempo não fazia.

— Do quê está rindo — pergunta o médico surpreso com a reação de Renato.
— Desculpe-me Dr.. Foi espontâneo. Minha franqueza pede que lhe diga o quanto soou hilário vê-lo se debater nesse cipoal mental. Seu racional castiga-o sem piedade. Aliás a todos nós.

Preste bem a atenção ao que vou lhe dizer. Para isso, desligue esse seu arsenal defensivo de conceitos e prepare-se para ouvir algo que para qualquer ser humano vazio de aspirações que não seja a sua auto-satisfação, soará como a mais pura besteira fantasiosa que alguém poderia imaginar.

Vou lhe fazer uma pergunta. E você não faz idéia como é simples a pergunta que vou lhe fazer.

— Sim. Faça-a. Você me envolveu nessa situação. Agora cabe a você esclarecer-me tudo isso que vem me inquietando.

Diga-me então. Qual é o seu nome? — Pergunta Renato com o semblante sério.

— Você está brincando! — diz o médico já se levantando.
— Você não entendeu, Retire seu nome. Aquele que ao nascer lhe deram. Esse nome na verdade, corrompe o prelado de uma consciência impessoal que sufocada pela imperiosidade do individualismo, se auto hipnotiza crendo ser o que o nome cívico lhe sedimentou como sendo um persona produto acabado. A inexistência dele revelaria um movimento ininterrupto, flutuações de sentimentos e pensamentos como nuvens que circulam em um espaço que nem ao menos um “você” pode ter absoluta certeza se é interno.
— Desculpe-me mas análise psicológica não é minha especialidade. Não sei aonde quer chegar.
— Olhe, o que eu quero lhe dizer é que o que você vivenciou não tem denominação que o defina. Está além daquele amontoado intelectulóide seja ele organizado ou não. Quando isso acontece, e é numa fração de poucos segundos, é tão intenso que obnubila totalmente a consciência hodierna, sistemática. Mesmo assim sobrepõem-se uma consciência que não se auto-afirma “eu sou” e nem a preocupação em decretar nomenclaturas a qualquer coisa. Simplesmente ela é. E isso é um sol.

Nesse momento o médico levantou-se estendeu-lhe a mão, cumprimentou-o e foi-se embora.
Lá fora o sol baixava no horizonte e o céu era o mais puro gradiente âmbar.

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Do outro lado da ponte


foto/imageshack

Mestre Noé vivia me convidando pra conhecer o mangue. Eu era moleque travesso, cabeça cheia de fantasia, mas as panela lá de casa andava vazia. Minha mãe, coitada, sofria de dor nas junta como ela mesma dizia praquela vizinhança. Sorte que Dª Ricardina dava uma mãozinha pra nóis. De vez em quando levava um pouco de feijão e farinha, uma garrafa de leite e alguns pedaço de pão amanhecido.

A mãe fazia uns trabaio de bordadeira e de vez em quando, as madame rica pedia pra ela fazer bolo de festa mais docinho. Mas demorava tanto pra pedir que a comida acabava e o dinheiro tumbem.

Meu pai, homem forte, trabalhador, tinhoso como o quê, andava viajando pras banda do Seringal. Era caixero viajante, e disse pra minha mãe que ia vortá com a mala cheia de dinheiro e ia tirar nóis tudo da miséria. Isso já tinha mais ou menos 4 anos.

Coitada da véia, ficou a olhá pro horizonte, vê se ainda conseguia enxergá, na miragem do sol, o chapéu do meu pai. Aquele maldito desgraçado! Deve de tê arrumado outra famía e esquecido de nóis.

Ficamos eu mais minha mãe e minha irmã, a Luizinha. Moça esbelta , morena da roça, perna roliça e seio farto. Em todos seus 20 anos, Luizinha nunca tinha namorado. Mas a bicha tava de zóio cumprido num peão que fazia uns servicinho pra Dª Ricardina. Mas a bem da verdade ele espichava o zóio pra ela tumbem. ARA! Nem vem, ninguém bota a mão na mana.

Um belo dia, desses de sol varando a cachola da gente, veio mestre Noé e disse pra minha mãe que tinha me arranjado trabaio, e dos bom.
- Se achegue home - disse a mãe.

Dia dona Nice!
Dia ... O traste do moleque tá se escondendo. Vem cá seu peste.

Corri e me joguei debaixo da cama. Minha mãe que já conhecia minhas fuzarca logo me puxou pelo pé dizendo:
- sai seu muleque duma figa. Mestre Nóe tá lá fora. Vai te levá pro trabaio.
_Que trabaio mãe? Eu quero ajudá a senhora na roça mais a Luizinha.
Que nada, seu tre lê lê.

Nisso eu olhei pras berada da porta e vi as bota suja de lama do mestre. Me arrepiei até a carapinha. Jesus toma conta eu disse assim, por dentro de mim.

Dia seu muleque! Fica em pé logo que tu já tem tamanho de home e braço de estivadô e mão de escavadô. Teu lombo é surrado e é hoje que tu vai comigo pro mangue.

Diacho de mangue nada Mestre. As muié dessa casa necessita de mim. Sou o único home que elas tem.

Por isso mesmo Antoninho. De hoje em diante tu vai ganhar o sustento e ajudá nas despesa da casa. Onde já se viu um home desse tamanho, fica debaixo da cama com medo do batente. ARA SÔ!

E assim, o dia, e a semana (talvez a vida) teria seu recomeço pro Antoninho, menino de seus 15 anos, 1.80 de altura , cara de bonachão e corpo de homenzarrão.

Por Lu Cavichioli