No Balcão do Quiosque

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

O ovo

Uma criança de seus 5 anos, nascida na boa sorte de uma família economicamente mediana, vive feliz no seu mundo feito de brincadeiras e gulousemas. Dorme profundamente a sonhar ansiosa pelo dia de amanhã que, para ela, nunca acabará. Durante o sono, uma voz de timbre amigável, diz-lhe: “Que bom o mundo ser assim não é mesmo? Você dorme, acorda, come o que gosta e depois vai brincar até se cansar. Porque então não continuar dessa forma para sempre?”

A criança acorda com a seguinte idéia na cabeça: “isso mesmo, não vou deixar de ser criança nunca! Ficarei para sempre nessa fase. Não serei um adolescente como meu irmão.”

O tempo passa e a adolescência chega para essa criança. Uma revolta tida como sem causa pela crítica exterior, o torna inquieto com o mundo e consigo mesmo. E o adolescente lembrando-se da voz que, na sua infância, lhe falou no sonho, decide: “dessa vez não me pegarão; vou manter-me adolescente e ninguém irá alterar isso!”

Mas o tempo, como que dando de ombros à efemeridade dos queixumes humanos, esvazia toda essa utópica pretensão adolescente e remete-lhe direto para a fase pré-adulta, sua juventude.

Nessa fase, aquela criança sentindo-se como que sufocada por inúmeras responsabilidades, se encolhe interiormente e de lá emite um S.O.S.: “finque sua bandeira da vitalidade e energia, não saia dessa fase!”

Frio como um mármore, lá se vai o tempo indiferente aos ideais da juventude. E com ele a própria juventude. Chega a “idade madura”. Ou, mais dura?
Agora o seu diálogo interno diz: “como sei o que é a vida, dosarei todos os meus passos; só irei na boa e assim me manterei, até darei orientações para os imaturos.”

Imponderável como o amanhã, o tempo empurra o “tolo filósofo” para a velhice.
Sem ter opção, acorda de madrugada a procura daquela voz que o acompanhou desde criança. A voz emudeceu. Em seu lugar surge um ovo. Um ovo? Sim, um ovo. O tamanho é de dimensões imprecisas. Se quiser vê-lo pequeno, pequeno ele será. Se quiser quase desaparecer próximo a ele, gigante ele se tornará. Não é magia, não é feitiço, não é sobrenatural: é um... ovo.

Ele tem casca. Não uma casca dura. Mas se quiser que seja dura ela o será. A cor da casca é o mistério maior: é incolor; ou melhor: é transparente.

O que tem dentro do ovo? Forçando a visão para além da casca, o moribundo olha fracamente e o que vê o emudece; seca sua garganta; paralisa seus membros. Porque ele vê exatamente o que quer ver. E o que vê o amedronta. Pois o que o amedronta está pronto para sair da casca. Está pronto para nascer.

Ele fecha os olhos. Não quer ver mais um nascimento.

Absorvido em total inconsciência, encolhe-se; dissolve-se.

Um primeiro olhar, um primeiro pensamento reconhecido como tal, diz: “como faço para dormir? Basta fechar os olhos?”

E a criança começa seu aprendizado.

4 comentários:

chica disse...

Estou aqui te aplaudindo,Leandro! Foste brilhante!Aliás, sempre!!abração,chica

Graça Lacerda disse...

Leandro,

colocaste aqui um verdadeiro tratado de psicologia, rapaz!!!

Muito bom, mesmo, pois são fatos que a gente conhece, são 'crises' que a gente vivencia e o mais importante: vistos sob uma outra e nova ótica, a sua!

Parabéns, e como a Chica, te aplaudo.

Abraços!

Milene Lima disse...

Nossa, o quão intenso foi esse post.
Tudo muito pertinente...e somos mesmo 'tolos filósofos', achamos q sabemos tudo.

Quanta prepotência!

Aceite abraços de uma estranha...
e beijinhos também.

Barbara disse...

Só a infância sabe dormir.
Comer
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Porque a inocência é sagaz sem o saber e aí mesmo está a sagacidade.