No Balcão do Quiosque

sábado, 9 de outubro de 2010

Tradição

"Tradição (do latim: traditio, tradere = entregar; em grego, na acepção religiosa do termo, a expressão é paradosis παραδοσις) é a transmissão de práticas ou de valores espirituais de geração em geração, o conjunto das crenças de um povo, algo que é seguido conservadoramente e com respeito através das gerações.
A tradição e sua presença na sociedade baseiam-se em dois pressupostos antropológicos:
a) as pessoas são mortais;
b) a necessidade de haver um nexo de conhecimento entre as gerações."...


Não há dúvidas de que a tradição vai muito além dessa breve definição, preguiçosamente copiada da Wikipédia.
Para nós mortais, religiosos ou não, o significado de tradição passa por castas, famílias, classes sociais...Enfim, por todos aqueles que, de alguma forma consideram-se especiais diante dos outros pobres mortais. Aliás, mais pobres e mais mortais do que eles próprios.

A família entra como um parágrafo a parte quando o assunto é tradição. Algumas famílias sentem-se mais tradicionais do que outras. A escala de medida não é bem clara, mas mesmo assim elas conseguem diferenciarem-se, qualificando a si próprios, enquanto desqualificam os outros.

Alguns enchem a boca para pronunciar seus sobre-nomes italianos: "Antognoni", "Farfareli", "Fidelini", "Falconieri"...Na verdade descendem de pobretões que vieram ocupar com grande vantagem e incentivos, os lugares deixados pelos pobres escravos negros, largados na sarjeta. Embora não conhecessem nada do riscado da cafeicultura, eram mais branquinhos e bonitinhos do que aqueles "crioulos horrorosos" (Não consigo enxergar outro motivo para tal sacanagem). Já há outros que capricham no biquinho para pronunciar "Fechecler", "Abajour"...Enfim, tradicionalíssimos de grande e nobre estirpe.

Mas existem aqueles que, inconformados com sua falta de "berço", não exitam em apelar ao casamento, na busca incansável da "tradição". Nesse caso, vai aí a possibilidade do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Afinal, linhagem é linhagem, não importando se o acesso à "tradição" se dá pela entrada da frente ou pela saída de trás.

O meu caso não foge a essa regra.
Totalmente sem tradição, minha família teve seu início a partir de um português sem sobre-nome.
- Qual o seu nome meu senhor?
- Antônio José...
- Mas Antônio José de quê?
- Antônio José de nada ó pá.
- Antônio José de Nada é o nome completo? O sobre-nome é "Nada"?
- Não, o sobre-nome é nenhum.
- Afinal, qual o seu nome completo?
- Ó pá, é Antônio José e ponto final, mas sem escrebere o "ponto final". Está bem entendidinho?
- Então vamos tentar a sua filiação. Nome do seu pai?
- José Antônio.
-...De quê?
- Só isso
- ?!? Tá de sacanagem portuga? Nem quero saber o nome de sua mãe.


Não preciso dizer que hoje, alguns de seus decendentes retorcem-se na busca de alguma junção matrimonial que os "tradicionalize". Outros tentam desesperadamente arquitetar algum sobre-nome que se encaixe na história de meu avô. Teria sido Pato? Ou Pereira? Quem sabe Oliveira?

De onde veio, de que família pertencia, onde nasceu...Dele só se sabe que era um tripeiro. Não no sentido tripeiro, nascido no Porto (para quem não sabia dessa, vale a curiosidade), mas o tripeiro que vende tripas, miúdos do boi...não os miúdos no sentido dos "filhos dos bois portugueses", mas no sentido das vísceras do bicho.
O que se sabe é que, aproveitando-se de uma época em que o homem da casa não tinha satisfações a dar, meu avô iniciou a família "José Ninguém".
...E assim espalhou suas sementes pelas terras brasileiras, mais precisamente em Turiaçú, entre Madureira e Rocha Miranda, no subúrbio do Rio de Janeiro.

O que se fala sobre Antônio, dá conta de um bom homem, trabalhador honesto e pai dedicado, mais nada (o que já me basta).
Sua cidade portuguesa de nascimento segue como uma incógnita. Suas reconhecidas presteza, bondade e simpatia, de certa forma o protegeram de especulações maldosas, que certamente seriam feitas a respeito de sua reduzida alcunha.
Mas eu, como descendente e herdeiro de sua cepa, por direito de neto, serei inconseqüente e arriscarei em especular:
Teria Antônio José emprenhado alguma galega e partido para o Brasil, abdicando do sobre-nome para não ser localizado por um pai furioso?
Faz sentido...
Ou tudo isso, mas no lugar do pai furioso, um marido traído?
Faz mais sentido ainda...
Ou teria dado um calote na praça lusitana e fugido para o Brasil de modo a usufruir dos benefícios do golpe?
Considerando sua vida inicial em Turiaçú, num canto da casa que minha avó dividia com suas irmãs...Se foi golpe, foi mal sucedido.

A verdade mesmo de toda essa história, é que o bom Antônio José construiu uma família sem nenhuma tradição. A família "José Ninguém", cuja maior tradição é exatamente essa...Não ter tradição alguma.
Então? Vamos continuar assim? Vamos manter nossa tradição secular?

Enfim...Tradição é isso.


Marcos Santos

Fotografia: Gravura sobre a tradição em família, de Gordon Lawson