No Balcão do Quiosque

segunda-feira, 30 de julho de 2012

Miroslav Zavodski - O Carioca da Gema

Esse pastel é novo aqui, mas requentado ao longo dos tempos. Vamos a ele!


A brasilidade é um fenômeno interessante. Mais interessante ainda é verificar que ela pega, contagia, irradia.

Miroslav, Miro como nós o chamávamos, era um Tcheco fugido dos tentáculos do regime totalitário Soviético.

Tendo passado por uma jornada impressionante durante sua fuga, Miro somente chegou ao Brasil uns cinco anos depois.  Aqui se estabeleceu,  inicialmente na Urca, onde tomou gosto pela pescaria e posteriormente no Méier, no subúrbio do Rio de Janeiro.
Ali no Méier, Miroslav, mais do que aprender e assimilar os costumes brasileiros, passou a ser, apesar de seu forte sotaque, um autêntico carioca.  É nesse ponto que quero chegar.

Já estávamos prontos para irmos à casa do Dutra. Naquela época apenas Miro tinha carro, um Chevette 74 todo enferrujado. Era comum sairmos juntos às sextas feiras, após o expediente, para tomarmos uma cervejinha. Faltava apenas o “Botão”, um "crioulo" enorme e com uma careca lustrosa, redonda como um botão de paletó. Daí o apelido.

Botão era o encarregado de toda a usinagem e era um homem extremamente educado, além  de muito gentil. Dificilmente perdia as estribeiras, apesar de sua grande responsabilidade e do grande número de pessoas sob seu comando. Mas sempre há uma primeira vez.

Observando que  Pedro Paulo, Genésio e eu, havíamos chegado cedo ao estacionamento, Miro pediu que fôssemos nos acomodando no banco de traz do Chevette.
Alguns minutos depois foi a vez do “Botão” chegar. E chegou tão arrumado e cheiroso que ninguém poderia supor que iríamos ao Morro do Jacarezinho, comer o sarapatel da mulher do Dutra, uma nordestina de mão cheia na arte da cozinha.

Dutra era um fresador português, que nas horas vagas fazia agiotagem para a peonada e nos fins de semana vendia um ou outro porco de seu criatório. O sarapatel, especialidade de sua esposa, era apenas um chamariz para atrair fregueses ao morro, de modo a comprarem os despojos do pobre suíno.

Voltando ao Chevette, lembro-me que minhas pernas estavam apertadas pelo banco do carona. “Botão”, que era um sujeito da minha estatura, aproximadamente 1,82m, gostava de espaço, o que explica o meu aperto. Mas tudo bem, estávamos prontos para uma bela seção de sarapatel com chouriço e muita cerveja gelada.

Miro não chegou a dar a partida no carro. Olhou fixamente para o “Botão”, que já estava sentado no banco do carona, pensou durante alguns instantes e finalmente fulminou com seu sotaque tcheco:
- Meu caro “BOTON”, passa para banco de “trax”.
“Botão” amarrou a cara, franziu o cenho, não deu um pio, levantou-se e inclinou o banco para que eu pudesse trocar de lugar com ele. Assim o fiz.
Dali para frente o clima foi péssimo. "Botão" com a cara fechada e o Miro, "mudo", fingindo que não era com ele.

Agradeci aos deuses quando saímos daquele carro de clima nublado  e pudemos finalmente nos deleitar com as gostosuras gastronômicas da mulher do Dutra. E foi bom demais...enquanto durou.

E como tudo o que é bom dura pouco e tudo que é bom  demais dura um piscar de olhos, era chegada a hora do suplicioso  clima  do Chevette. Uma vez que Miro e Botão não se falaram durante o “Happy Hour Suíno”, era lógico imaginar o clima mais carregado ainda na volta. 

E foi o que aconteceu... 
Para cada palavra pronunciada por Miro, uma “alfinetada” cortante era desferida pelo “Botão”. Era realmente um “saco”. Uma situação ruim de aturar. Cheguei a pensar na possibilidade de terminar a descida do Morro do Jacarezinho a pé, mas o excesso de zelo por minha vida impediu. Afinal, quem gosta de andar em favela é turista e  intelectual. Eu não era nem uma coisa e muito menos a outra.

Quando finalmente chegamos ao pé do morro, onde nos separaríamos e cada um seguiria seu rumo, aconteceu um fato curiosíssimo e que objetiva toda essa ladainha: A brasilidade aflorada. Melhor ainda, a carioquice na sua principal característica, que reside fundamentalmente no estado de espírito, no jeito de ser e nas alternativas encontradas para certas situações, independente da naturalidade ou nacionalidade do cidadão. É como diz a música: "Cariocas são espertos, cariocas são bacanas, cariocas são sacanas..."

“Botão”, engasgado com a atitude do Miro, magoado por sentir o peso do preconceito de cor demonstrado pelo amigo Tcheco, finalmente botou suas angústias para fora e “fuzilou”:
- Miro, seu filho da puta. Você tem preconceito com “preto”, você não gosta de “preto”. Vocês vêm para o Brasil, fazem a vida e ainda se acham no direito de botar banca com os negros. Seu branco de merda.

Miro não se abalou. O que deixou o “Botão” ainda mais irado.
- Responde seu safado! Responde racista! Vamos!

Miro estacionou calmamente o Chevette 74, desligou a ignição e com sua singeleza soltou a seguinte pérola carioca e sotaque tcheco:
- Bom meu caro, problema "seguintch". Eu gosto de “negon”. Meu mulher é “paraibinha”. Eu "non" ligo. Gosto muito de “BOTON”. “BOTON” é meu chapa pra  caramba. Problema é polícia.

“Botão” retrucou, impaciente. – O que tem a polícia?

-Bom meu caro, problema "seguintch" (continuou Miro). Esqueci todos os documentos no "meu" casa, inclusive do carro. Quando vi tremendo “negon” do meu lado pensei: “Polícia não vai perdoar “negon” no banco do"frentch", subindo morro.” Foi só isso, nada contra “negon”.

Nesse momento todos nós, inclusive eu, ficamos impacientes e gritamos com ele: – E porque você não falou antes com a gente ?

- Bom meus caros, problema "seguintch" (concluiu o Tcheco). "Meu" mulher queria sarapatel com chouriço e eu "non" tinha "colhon" de subir morro sozinho e sem documentos. Se conto, ninguém ia comigo.

Sinceramente, acredito que essa resposta não tenha deixado o “Botão” satisfeito. Mas quando recordo dela, sinto saudades do tempo em que eu compartilhava da companhia de Miroslav Zavodski, um brasileiro que nasceu na Tchecoslováquia. Um tomador de cerveja com chouriço e sarapatel no alto do Morro do Jacarezinho. Um autêntico "Carioca da Gema”.


Marcos Santos
Rio de Janeiro

11 comentários:

☆Lu Cavichioli disse...

kkkkkkkk Impagável, meu caro Marcos!
Que história hein?

O Negon(Botão) botou pra quebrar em cima do gringo, mas ele deu a volta por cima e foi muito, mas muito engraçado a maneira como ele terminou com o clima ruim dentro e fora do chevette!

O melhor foi que a mulher era paraibinha kkkkk e queria comer a comida da mulher do portugues...

Nossa, adorei ler esse tua aventura, que você contou com esse teu jeitão carioca de ser. .. Ouvi até o sotaque rs...

Pastel bom, esse! :)

beijo!

João Esteves disse...

Marcos, mandou foi bem, hein. Pode estender este abraço virtual que pelo Quiosque lhe mando ao Miro e ao Botão, que você acaba de apresentar caso ainda saiba ou venha a saber dos respectivos paradeiros.

Milene Lima disse...

Que massa! Miro foi mais eshperto do que a cariocada toda, mandou bem!

Adoraria ter visto isso tudo, mas foi como se o tivesse.

Beijo, Marcos.

MARILENE disse...

heheheheheheh! Amei! Ainda hoje, pode ocorrer situação semelhante. Não deveria, mas a polícia tem um jeito estranho de fazer avaliações.
E você, um jeito especial de narrar um fato. Bjs.

BLOGZOOM disse...

É o seguintch: a minha idosa tia tinha um amigo colorido, Tcheco, chamado Miro tambem! kkkkkk

Fiquei rindo aqui, lembrando dele falando, das atrapalhadas tambem...

E falando em Sarapatel, domingo vou experimentar o que a vizinha diz fazer maravilhosamente bem! rsss

BEIJOS

chica disse...

rsssssssss...Que legal,Lu! Vi a chamada, deu saudade e vim ler esse hilariante texto do Marcos..beijos,tudo de bom, chica

Graça Lacerda disse...

Eta, que techto legal!!kkkkkk
Marcos, você excreve como ninguém, amigo.
Tem um jeito muito seu mexmo de contar uma hixtória de humor!
Adorei!!!

Elisa T. Campos disse...

Lu

Um excelente texto do seu amigo Marcos. Cômico e inteligente.
Também me induz a fazer um sarapatel que aprendi com uma amiga.

Beijos

José Edward Guedes disse...

Muuuuito bom, divertido, inteligente, legal mesmo de se ler. Parabéns!!!

Vera Lúcia disse...

Bem divertida a crônica do Marcos.
Esperto o Miro. Mostrou-se um perfeito carioca no quesito "malandragem".

Beijo procê e abraço pro Marcos.

A VIDA É UM ETERNO APRENDIZADO disse...

Bom dia!
Gostei muito do que li.
Preconceitos em todo o mundo ainda é forte.Mas aqui entre nós blogueiro existe atitudes e comentários de respeito.
Grande abraço
se cuida