Você consegue imaginar que uma criança seja registrada apenas pelo pai, e que onde normalmente entraria o nome da mãe conste no documento “mãe desconhecida” ou expressão quejanda? Não lhe parece meio absurdo? Mesmo sem quaisquer estatísticas, muita gente por aí apostaria na raridade, ou até na impossibilidade de um fato como este.
Mas imaginar a certidão, isso até que dá. É o que passo a fazer, então. Aqui, os fatos e as personagens são fictícios. Qualquer semelhança (e toda aquela baboseira de sempre) terá sido mesmo pura coincidência, pois eu estou é inventando essa coisa toda, de esferográfica na mão direita, que sai autografando tudo o que me vem.
Não precisamos de muitas personagens, como convém a um conto. Estas não precisam de nome, tampouco. Pra quê?
O homem, um belo dia, se acha dentro de sua casa, onde mora só. Ele pode ser solteiro, viúvo, divorciado, marido desertor, ou qualquer coisa que, na prática, queira dizer que de mulher ele gosta, sim, mas no momento não tem, ou pelo menos não vive com nenhuma. Mora sozinho, como já disse. Vai daí que alguém lhe chama lá de fora (ou bate à porta, ou toca a campainha). Ele não está esperando ninguém, muito menos àquela hora (que pode ser qualquer hora (do dia ou da noite) de qualquer dia, de qualquer mês, quase de qualquer ano). Vai ver do que se trata.
É uma mulher. Convém imaginá-la relativamente jovem, mais ou menos atraente, mas que não pareça lá muito próspera e traga no semblante, nos movimentos, na voz, em tudo o que expressa, um não sei quê de desespero de mistura com revolta. Não a reconhece. Não se recorda de jamais tê-la visto antes. Antes, porém, de ter tempo para perguntar-lhe o que desejava, ouve-a chamá-lo pelo nome. Então, ela o conhece. Antes que ele se recupere desta primeira surpresa, a de ela saber seu nome, eis que ela lhe transfere o bebê que traz nos braços e fuzila: “Aqui, seu safado, cachorro... toma, que o filho é teu!”
Por instinto, sente-se já na obrigação de não permitir que aquele ser humano inocente agora em seus braços se machuque. Põe-se em estado de alerta por conta daquele neném em seus braços primários, e o estarrecimento em que se encontra não lhe permite abrir a boca pra falar. Aliás, nada lhe ocorre dizer, também. E a mulher simplesmente desaparece de forma tão repentina quanto aparecera, antes que ele dê por si. Ei-lo agora com um “filho” no colo, que lhe fora entregue por uma mulher que por mais que pelejasse não se lembrava de já ter nem sequer VISTO antes, que dirá de já ter FEITO com ela nada que pudesse dar naquele RESULTADO que ela abruptamente lhe enfiara nos braços, com aquelas terríveis palavras.
E agora? A mulher de cuja identidade ele não faz a mínima idéia simplesmente some, e ele está com um bebê estranho no colo, deixado por ela, que saíra (ela, não o bebê) sabe-se lá de onde, e que fora sabe-se lá pra onde. Está convencido de que a paternidade por ela alegada não tem a mínima chance de ser verdadeira.
Passa-se algum tempo. O bebê chora. Ele adivinha: é fome! Providencia o que considera adequado para alimentar seu “filho” (ou “filha”; nunca a diferença entre os sexos lhe pareceu fazer menos diferença). O que ele tem que fazer agora é cuidar do bebê. Tudo lhe parece o pior dos pesadelos. “Como é que pode, logo comigo! Logo agora! Tão assim, do nada! Tão do nada, mesmo!”.
Sem idéia de o que fazer, vai fazendo o que pode a cada nova urgência apresentada pela situação. Segue como pode cada coisa que sua precária intuição masculina sugere. Só agora percebe quanta utilidade existe naquele famoso sexto sentido que, ao que tudo indica, só as mulheres têm, mesmo.
O bebê volta a chorar. Ele calcula que fome ainda não deve ser. A última refeição fora só há uns poucos minutos, coisa de meia hora ou menos. Dá uma espiada dentro da fralda. Fraldas limpinhas para troca, o bebê tem. Ou foram deixadas pela misteriosa mãe, ou compradas ali pertinho pelo improvisado pai. O que vê confirma-lhe a suspeita. Numa atrapalhação que o excesso de cuidado só faz aumentar, ele faz a limpeza daquela bundinha tão minúscula e de uma cor qualquer, desde que plausível para uma combinação da sua com a daquela mãe. Na troca de fraldas, toma incurioso conhecimento do sexo do bebê, e isso não lhe diz absolutamente nada. Mas vai se afeiçoando cada vez mais àquele ser, enquanto desempenha cumulativamente o papel imputado de pai e o improvisado de mãe. E não é que reparando melhor o bebê até parece ser mesmo sangue seu? Como é que pode? Começa a perceber traço após traço de semelhança, uma incrível semelhança. Que é isso, besteira, todo bebê sempre parece com todo mundo. Mas vai experimentando um prazer inefável a cada vez que descobre naquela repentina criatura alguma nova coisinha que lhe pareça sua. “É a minha cara! Se fosse mesmo meu sangue, talvez nem parecesse tanto comigo”.
E por falar em consangüinidade... Não conhecia mesmo a mulher, nem sequer no sentido de, ainda que vagamente, saber quem era ela, que dirá naquele sentido mais antigo ainda, o bíblico, de tê-la conhecido, e de ela ter concebido e dado à luz aquele bebê que lhe enfiara nos braços sem mais nem menos, dizendo aquilo e depois sumindo na poeira.
O bebê simplesmente não poderia ser despachado de maneira que lhe viesse a trazer problemas futuros de consciência. Isso não, mesmo. A figura exata da mulher vai ficando cada vez mais imprecisa, mais dúbia em sua memória. O que permanece sempre perfeitamente nítido é só aquela voz inequivocamente carregada de uma absurda certeza, mas ainda assim certeza, sem a menor dúvida. Rumina todas as idéias possíveis e pensáveis sobre que providências tomar agora. Tudo lhe parece uma absurdidade só. O tempo vai passando, e ele precisa fazer alguma coisa definitiva sobre o destino daquele “filho”. Por fim, ainda que confuso e contrariado, considera assumir o bebê, fazer-se seu pai mesmo, em vista daquelas insanas circunstâncias. Porque não? Adotaria a criança. A idéia mal bate e já começa a seduzi-lo. Não acreditava de jeito nenhum em destino nem em nenhuma dessas besteiras do gênero, como vidas passadas ou futuras. Vida para ele era só essa, a (pra ele) real e que ele conhecia mal e parcamente. O resto, se algum, era pura especulação, puro delírio. Tremenda ironia então do inexistente destino aquele bebê trazido por uma louca que a essa altura do campeonato já não fazia muito sentido esperar rever. Sumira, desaparecera.
Decide-se, enfim, pela adoção, e começa a aconselhar-se com todos os profissionais que a situação justifica. E tome de advogados, de assistentes sociais, de conselheiros tutelares, de psicólogos, de enxeridos de todo tipo, de tudo, enfim. Pergunta daqui, indaga dali, informa-se cada vez melhor antes de dar o passo definitivo no sentido de assumir aquela paternidade imputada com tamanha ênfase, tão inesperadamente. Sai boquiabrindo todo mundo a quem relata ou menciona o fato.
Nesse fala-e-ouve, sugerem-lhe um teste de DNA, só para tirar mesmo qualquer teima. Primeiro ele estrila, convencido que estava de não conhecer mesmo a tal mulher que o acusara de ser o pai do agora seu bebê. Vasculhara de tudo que é jeito a memória para o período relevante, nada ali encontrando que o levasse a ver proveito na despesa em que certamente incorreria para tirar tal prova negativa (desnecessária e inútil, no fim das contas).
Contudo, vai sendo aconselhado cada vez com mais insistência e por mais pessoas a fazer o teste. Até que se rende. Entendidos no assunto recomendam-lhe dois laboratórios dos mais conceituados (e caros, claro), em dois continentes. Envia a ambos as amostras, na mais rigorosa conformidade com todas as instruções recebidas. Tem toda essa trabalheira e ainda gasta uma baba! Mas enfim chegam, quase juntas, as duas respostas que são no fundo uma só e a mesma. Estava pra lá de confirmado. A tal mulher não cometera qualquer erro, nem gramatical nem semântico, ao proferir aquela terrível última palavra que ainda ecoava em seus embasbacados ouvidos: “...teu!”.
Foi assim que passaram a constar na certidão: o nome completo do pai, um outro que ele escolhera para dar ao bebê juntamente com o seu sobrenome, e no lugar onde normalmente entraria o nome e alguns dados da mãe, apenas a expressão “mãe desconhecida”. Pelo que ouve no cartório, seu caso não tem precedentes.
E ele continua sem entender como poderia ter dado início a essa história, ter protagonizado uma cena tão interessante de se protagonizar seja na qualidade de personagem, ou na de ator, ou mesmo na de pessoa da vida (para ele) real, contracenando com aquela mulher que, a bem da verdade, dificilmente ele esqueceria tão completamente assim, e ainda por cima em tão pouco tempo. Não mesmo. A própria cena provavelmente envolvera ensaios e tudo o mais, caramba. Como afinal teria feito aquilo? Dormindo? Hipnotizado? Em transe mediúnico? Chapado? De que jeito, meu Deus do céu? Nada faz o menor sentido. A pergunta se torna um chicote hiperativo. Nunca vendera, muito menos doara porra nenhuma pra bancos de esperma. Mas foi exatamente assim que a certidão do bebê ficou. Lá está ela. Pode ser vista e lida pela mulher, caso ela decida reaparecer do nada e a qualquer hora, como costuma; ou por ele próprio, mais outra vez; ou pelo próprio bebê, depois de alfabetizado, bem como por todos os demais personagens ali presentes o tempo inteiro, mas que, propositadamente implicitados pelo contista, viram-se obrigados a guardar o tempo inteiro aquele profundo, aquele tumular silêncio de meros espectadores.
5 comentários:
Tem uma fértil imaginação e escreveu um conto que poderia ser considerado real. Surpreendeu-me, porque não concebia tal possibilidade. E aí está ela, com detalhes plausíveis. Parabéns! Bjs.
Caraca, João?! Você requentou esse pastel no forno convencional, microondas ou re(fritou)? kkkk
Porque tá bom demais da conta, viu?
Nunca tinha lido este teu falar meu amigo. Vc soube prender a atenção do leitor. E tome a ler... Vai lendo, vai lendo... e cadê o nome do bebê? Eu queria saber rsrs
Resumo da ópera:
João no balcão prendendo a atenção!
Vamos tocar o Quiosque certo guido? rsrsrs
IMPAGÁVEL tua história
Bacios da amiga e admiradora Lu C.
Re-inauguração em grande estilo, com direito um pastel requentado delicioso, que com esse recheio não merece ser chamado de "pastelão" - pois é iguaria finíssima! Parabéns, amigo. Abraços.
Homens! Mal podem se lembrar por onde deixaram filhotes!
Achei bacaninha as várias possibilidades do leitor enxergar as personagens. O bebê pode ter qualquer cor, desde que combine vestígios de pai e mãe, o qual não sabemos também se possuem pouca ou muita melanina?
Então tá.
Farei-os aqui do jeito que eu quiser.
Acho que ele, o sujeito, será um bom pai pra essa criança sem mãe.
Como vai, João?
Beijo.
Para quem nunca ouviu história semelhante, um pastel novinho...
E uma situação inédita!
Pelo menos para mim.
Abraços!
Postar um comentário