No Balcão do Quiosque

segunda-feira, 30 de julho de 2012

Miroslav Zavodski - O Carioca da Gema

Esse pastel é novo aqui, mas requentado ao longo dos tempos. Vamos a ele!


A brasilidade é um fenômeno interessante. Mais interessante ainda é verificar que ela pega, contagia, irradia.

Miroslav, Miro como nós o chamávamos, era um Tcheco fugido dos tentáculos do regime totalitário Soviético.

Tendo passado por uma jornada impressionante durante sua fuga, Miro somente chegou ao Brasil uns cinco anos depois.  Aqui se estabeleceu,  inicialmente na Urca, onde tomou gosto pela pescaria e posteriormente no Méier, no subúrbio do Rio de Janeiro.
Ali no Méier, Miroslav, mais do que aprender e assimilar os costumes brasileiros, passou a ser, apesar de seu forte sotaque, um autêntico carioca.  É nesse ponto que quero chegar.

Já estávamos prontos para irmos à casa do Dutra. Naquela época apenas Miro tinha carro, um Chevette 74 todo enferrujado. Era comum sairmos juntos às sextas feiras, após o expediente, para tomarmos uma cervejinha. Faltava apenas o “Botão”, um "crioulo" enorme e com uma careca lustrosa, redonda como um botão de paletó. Daí o apelido.

Botão era o encarregado de toda a usinagem e era um homem extremamente educado, além  de muito gentil. Dificilmente perdia as estribeiras, apesar de sua grande responsabilidade e do grande número de pessoas sob seu comando. Mas sempre há uma primeira vez.

Observando que  Pedro Paulo, Genésio e eu, havíamos chegado cedo ao estacionamento, Miro pediu que fôssemos nos acomodando no banco de traz do Chevette.
Alguns minutos depois foi a vez do “Botão” chegar. E chegou tão arrumado e cheiroso que ninguém poderia supor que iríamos ao Morro do Jacarezinho, comer o sarapatel da mulher do Dutra, uma nordestina de mão cheia na arte da cozinha.

Dutra era um fresador português, que nas horas vagas fazia agiotagem para a peonada e nos fins de semana vendia um ou outro porco de seu criatório. O sarapatel, especialidade de sua esposa, era apenas um chamariz para atrair fregueses ao morro, de modo a comprarem os despojos do pobre suíno.

Voltando ao Chevette, lembro-me que minhas pernas estavam apertadas pelo banco do carona. “Botão”, que era um sujeito da minha estatura, aproximadamente 1,82m, gostava de espaço, o que explica o meu aperto. Mas tudo bem, estávamos prontos para uma bela seção de sarapatel com chouriço e muita cerveja gelada.

Miro não chegou a dar a partida no carro. Olhou fixamente para o “Botão”, que já estava sentado no banco do carona, pensou durante alguns instantes e finalmente fulminou com seu sotaque tcheco:
- Meu caro “BOTON”, passa para banco de “trax”.
“Botão” amarrou a cara, franziu o cenho, não deu um pio, levantou-se e inclinou o banco para que eu pudesse trocar de lugar com ele. Assim o fiz.
Dali para frente o clima foi péssimo. "Botão" com a cara fechada e o Miro, "mudo", fingindo que não era com ele.

Agradeci aos deuses quando saímos daquele carro de clima nublado  e pudemos finalmente nos deleitar com as gostosuras gastronômicas da mulher do Dutra. E foi bom demais...enquanto durou.

E como tudo o que é bom dura pouco e tudo que é bom  demais dura um piscar de olhos, era chegada a hora do suplicioso  clima  do Chevette. Uma vez que Miro e Botão não se falaram durante o “Happy Hour Suíno”, era lógico imaginar o clima mais carregado ainda na volta. 

E foi o que aconteceu... 
Para cada palavra pronunciada por Miro, uma “alfinetada” cortante era desferida pelo “Botão”. Era realmente um “saco”. Uma situação ruim de aturar. Cheguei a pensar na possibilidade de terminar a descida do Morro do Jacarezinho a pé, mas o excesso de zelo por minha vida impediu. Afinal, quem gosta de andar em favela é turista e  intelectual. Eu não era nem uma coisa e muito menos a outra.

Quando finalmente chegamos ao pé do morro, onde nos separaríamos e cada um seguiria seu rumo, aconteceu um fato curiosíssimo e que objetiva toda essa ladainha: A brasilidade aflorada. Melhor ainda, a carioquice na sua principal característica, que reside fundamentalmente no estado de espírito, no jeito de ser e nas alternativas encontradas para certas situações, independente da naturalidade ou nacionalidade do cidadão. É como diz a música: "Cariocas são espertos, cariocas são bacanas, cariocas são sacanas..."

“Botão”, engasgado com a atitude do Miro, magoado por sentir o peso do preconceito de cor demonstrado pelo amigo Tcheco, finalmente botou suas angústias para fora e “fuzilou”:
- Miro, seu filho da puta. Você tem preconceito com “preto”, você não gosta de “preto”. Vocês vêm para o Brasil, fazem a vida e ainda se acham no direito de botar banca com os negros. Seu branco de merda.

Miro não se abalou. O que deixou o “Botão” ainda mais irado.
- Responde seu safado! Responde racista! Vamos!

Miro estacionou calmamente o Chevette 74, desligou a ignição e com sua singeleza soltou a seguinte pérola carioca e sotaque tcheco:
- Bom meu caro, problema "seguintch". Eu gosto de “negon”. Meu mulher é “paraibinha”. Eu "non" ligo. Gosto muito de “BOTON”. “BOTON” é meu chapa pra  caramba. Problema é polícia.

“Botão” retrucou, impaciente. – O que tem a polícia?

-Bom meu caro, problema "seguintch" (continuou Miro). Esqueci todos os documentos no "meu" casa, inclusive do carro. Quando vi tremendo “negon” do meu lado pensei: “Polícia não vai perdoar “negon” no banco do"frentch", subindo morro.” Foi só isso, nada contra “negon”.

Nesse momento todos nós, inclusive eu, ficamos impacientes e gritamos com ele: – E porque você não falou antes com a gente ?

- Bom meus caros, problema "seguintch" (concluiu o Tcheco). "Meu" mulher queria sarapatel com chouriço e eu "non" tinha "colhon" de subir morro sozinho e sem documentos. Se conto, ninguém ia comigo.

Sinceramente, acredito que essa resposta não tenha deixado o “Botão” satisfeito. Mas quando recordo dela, sinto saudades do tempo em que eu compartilhava da companhia de Miroslav Zavodski, um brasileiro que nasceu na Tchecoslováquia. Um tomador de cerveja com chouriço e sarapatel no alto do Morro do Jacarezinho. Um autêntico "Carioca da Gema”.


Marcos Santos
Rio de Janeiro

sexta-feira, 27 de julho de 2012

O Re(canto) da Rosa ...

... Rememorando (...)



Pessoal, em tempos de pastéis requentados, mas com ótimo sabor e (ainda) crocantes, trago a baila uma resenha elaborada com o maior carinho e cuidado que escrevi  em outubro de 2011 em virtude da leitura e re(leitura) da obra de um dos autores contemporâneos que pertencem à nova literatura (entre outros autores que conheci), bordando páginas emocionantes e emocionadas.

Eu falo de um amigo/poeta/seresteiro e quiosqueiro já conhecido entre as linhas internéticas que é nosso RR Barcellos

Permita-me, caríssimo, entitular a postagem unindo canto & rosa, devido à postagem anterior que encontra-se no Escritos na Memórias
que mescla em recepção, minha coletânea encontrando com tuas linhas poéticas.

Compartilho com todos  a resenha de " A obra de RR Barcellos"


Re(antos) de Mim recepciona O Outro Nome da Rosa






RESENHA ELABORADA EM DOIS ATOS

O Outro Nome da Rosa

*
Das Estações - Um Duo Nascimento Ato I

A obra literária de RR Barcellos figura entre os escritores vanguardistas, entretanto preserva o aspecto da escola literária dita romântica - do “eu” lírico. E isso pode-se perceber através da linguagem informal, isenta de rigores e rica em sentimentalismos.

O autor nos presenteia (regiamente) com surpresas lingüísticas e faz da semântica sua maior aliada. Rodolfo é um estilista da palavra escrita e possui (sorte a nossa), a capacidade em sugestionar, emocionar e instigar o leitor.

A obra em questão reinventa o amor revelando uma individualidade inquestionável, posto que nosso autor (creio eu) - discorre sobre seu próprio eu, manifestando ser o remetente da mensagem.

O enredo aprisiona o leitor de tal forma que não há sinais de cansaço na estrutura das linhas e nem tão pouco indícios de verborragia, acabando por sucumbir-nos (felizes), tal é o apelo lírico que envolve história e personagens.

Rodolfo revela-se flexível dentro de seu vasto conhecimento lingüístico e aproveita para brincar com as palavras, tornando-se íntimo acabando por embriagar-se num coquetel de sinônimos, antônimos e homônimos.
Pode-se dizer que RR é um caçador de palavras. Ele as doma, fazendo delas - escravas!

Enquanto o leitor, submisso espectador em palco supremo, ab(sorve) a sopa nutritiva para seus neurônios.

Entre os equinócios RR Barcellos convida solstícios, desfilando neles seu encanto peculiar, remetendo à obra (em justa causa) - “O Outro Nome da Rosa”, o poder místico do amor em conjunção com a Mãe Gaia; permitindo e projetando o nascimento da “Flor”: A ROSA DA MANHÃ!


*
Ego in Verso - uma composição artística intrínsica -Ato II

Há de se definir primeiramente a distinção entre poema e poesia:
Um poema é uma obra literária geralmente apresentada em versos e estrofes (ainda que possa existir prosa poética, assim designada pelo uso de temas específicos e de figuras de estilo próprias da poesia). Efetivamente, existe uma diferença entre poesia e poema. Este último, segundo vários autores, é uma obra em verso com características poéticas, ou seja, enquanto o poema é um objeto literário com existência material concreta, a tem como caráter imaterial e transcendente.

fonte Wikipédia

Na segunda parte da obra de RR Barcellos vê-se claramente esta mescla o que caracteriza sem dúvida a verdade incontestável da musicalidade sensitiva da poesia, que exala um lirismo velado com o objeto poético traduzido pela forma em que esta aparece dentro do contexto. Em outras palavras, o referido autor discorre sobre as mais diferentes formas que embelezam os versos em diferentes composições como os sonetos, acrósticos, poemetos, glosas, soneto em redondilhas ou simplesmente sonetilho, tão bem desenhado por ele, e que tem por título: “DIA DOS NAMORADOS” milimétricamente escrito na impecável linguagem barcelliana.

Barcellos reinventa linhas poéticas amalgamando estilos, povoando os olhos dos leitores com uma estética abrangente de várias escolas literárias e sendo assim torna-se UM entre TANTOS que habitam sua estatura de poeta: maduro, metafísico, exótico, romântico, parnasiano, contemporâneo e absolutamente en(cantador).
A musicalidade é traço marcante em todos seus versos que por serem tão elegantes, faz do EGO IN VERSO - uma coletânea glamurosa, perfeita para relembrar as noites insequecíveis dos saraus.

Sua generosidade em versos para com seus amigos, expressa uma breve lembrança de Manoel Bandeira escrevendo para Mario Quintana:

“Meu Quintana, os teus cantares
Não são, Quintana, cantares:
São, Quintana, quintanares (...)”

Finalizando sem métrica nem rima , fecham-se as cortinas, mas o espetáculo continua no blog deste autor que escreve na modernidade sonhos & realidades.


*Faltaram-me recursos intelectuais para uma melhor elaboração desta resenha, embora minha ousadia tenha falado mais alto*

Pra você, meu querido amigo RR
carinhosamente!

By Lu Cavichioli
Outubro/2011


sexta-feira, 20 de julho de 2012

SOBRE O AMOR QUE NUNCA MORRE


ADORANDO ESSE PAPO DE PASTEL REQUENTADO (ENQUANTO SE PREPARA A MASSA PARA PASTEL NOVINHO)... COPIADO E COLADO LÁ NUMA INQUIETUDE PASSADA, SEM MAQUIAR VÍRGULA QUE SEJA. POR QUE HOJE, E TODOS OS AMANHÃS É DIA DE SE AMAR O AMIGO. AMÉM!


A amizade é o amor que nunca morre, quintaneou o Mário para absoluto deleite dos crédulos e sensíveis, pertinazes na arte de imergir nesse sentimento de intensidade ímpar.

Sou Amigos Esporte Clube, sim senhor! Amo as suas minúcias e no transcorrer do meu caminho desejo sorver, apenas pelo tempo de uma vida, os seus inúmeros sabores até a última gotícula. Desconheceria a mim mesma tentando usar outro tipo de máscara.

Mas esse amor que nunca morre apresenta variedade no seu estampado. É preciso estar preparado para a colisão de idéias, conceitos e humores. Assim como não se pode viver sozinho um amor, a amizade não existe unilateralmente. Há de haver dois para serem amigos. Há de se ter cumplicidade e reciprocidade, ainda que tal reciprocidade não implique em imposição, do tipo “eu te dei carinho e agora quero em igual profundidade”... Esses temperos fundamentais para a fórmula (im)perfeita na arte de ser amigo soam espontâneos feito os banhos de chuva da nossa infância. Quando não é natural, outro nome pode ter, amizade não o é.

Deixando vagar os meus pensamentos, compus o retrato escrito da minha amizade... E gostei do que vi. É forte, frágil, humana.  Me apaixona o seu riso solto, contido, alto... Seu sotaque misturado. A pele que se metamorfoseia, num instante me vem brancura, outro é pura morenice, em seguida negritude. Brasileiridade linda tem a minha amizade.
Filosofa comigo, verseja lindamente, liga só pra dizer “senti saudades” e gostamos de nos falar todos os dias, mas quando isso não é possível, a bem querência se acomoda guardadinha na saudade, esperando o exato instante do encontro. Adoro dizer amores, mas também sou muito boa em proferir poesias sob forma de xingamentos. Fingimos indiferença, sabemos ser mutuamente egoístas e chatos... Sabemos amar o imperfeito.

 Acho graça da sua TPM crônica, as crises existenciais constantes, a sisudez eventual... Me dói a sua ferida, lhe machuca sentir meu choro. Consola minha alma ouvir um “só podia ser você pra me fazer rir numa hora dessas”...

É bacana escutar a mesma música, numa descombinação surreal de gostos ou viajando no mesmo som... Bom mesmo é a companhia, o ombro cuja disponibilidade é imensurável, feito uma tatuagem escrito “quer deitar aqui agora?”.

Temos a idade dos sonhos. Somos maduros, jovens, adolescentes, infantis... Me chama de Mi, Memem, Miminha, Milinda, MilenA... Aos seus olhos e coração sou lagarta listrada, flor rosa e vermelha, doce e igualmente ácida... Sou ironia e sarcasmo, melindre e sentimentalidade.  Amo seu jeito brejeiro, descolado, palavreando sobre tudo, me pedindo respostas... Procuro seu colo sempre que preciso, ouço seu sussurro me pedindo presença.

Descobrimos juntos o valor de nos aceitarmos como somos, embora seja ainda mais importante recuar quando preciso e compreender que a razão é instável e pode estar tanto lá, quanto cá. A razão não gosta de morada fixa.

De perto do mar, de onde vem o frio, da roça cibernética, do canto mais longínquo, ou aqui do meu lado... Minha amizade vem ao meu encontro e nossos braços abertos se misturam... E isso parece mesmo ser o melhor amor que há.




Milene Lima


segunda-feira, 16 de julho de 2012

Um pastel requentado: Sem mãe

Você consegue imaginar que uma criança seja registrada apenas pelo pai, e que onde normalmente entraria o nome da mãe conste no documento “mãe desconhecida” ou expressão quejanda? Não lhe parece meio absurdo? Mesmo sem quaisquer estatísticas, muita gente por aí apostaria na raridade, ou até na impossibilidade de um fato como este.

Mas imaginar a certidão, isso até que dá. É o que passo a fazer, então. Aqui, os fatos e as personagens são fictícios. Qualquer semelhança (e toda aquela baboseira de sempre) terá sido mesmo pura coincidência, pois eu estou é inventando essa coisa toda, de esferográfica na mão direita, que sai autografando tudo o que me vem.

Não precisamos de muitas personagens, como convém a um conto. Estas não precisam de nome, tampouco. Pra quê?

O homem, um belo dia, se acha dentro de sua casa, onde mora só. Ele pode ser solteiro, viúvo, divorciado, marido desertor, ou qualquer coisa que, na prática, queira dizer que de mulher ele gosta, sim, mas no momento não tem, ou pelo menos não vive com nenhuma. Mora sozinho, como já disse. Vai daí que alguém lhe chama lá de fora (ou bate à porta, ou toca a campainha). Ele não está esperando ninguém, muito menos àquela hora (que pode ser qualquer hora (do dia ou da noite) de qualquer dia, de qualquer mês, quase de qualquer ano). Vai ver do que se trata.

É uma mulher. Convém imaginá-la relativamente jovem, mais ou menos atraente, mas que não pareça lá muito próspera e traga no semblante, nos movimentos, na voz, em tudo o que expressa, um não sei quê de desespero de mistura com revolta. Não a reconhece. Não se recorda de jamais tê-la visto antes. Antes, porém, de ter tempo para perguntar-lhe o que desejava, ouve-a chamá-lo pelo nome. Então, ela o conhece. Antes que ele se recupere desta primeira surpresa, a de ela saber seu nome, eis que ela lhe transfere o bebê que traz nos braços e fuzila: “Aqui, seu safado, cachorro... toma, que o filho é teu!”

Por instinto, sente-se já na obrigação de não permitir que aquele ser humano inocente agora em seus braços se machuque. Põe-se em estado de alerta por conta daquele neném em seus braços primários, e o estarrecimento em que se encontra não lhe permite abrir a boca pra falar. Aliás, nada lhe ocorre dizer, também. E a mulher simplesmente desaparece de forma tão repentina quanto aparecera, antes que ele dê por si. Ei-lo agora com um “filho” no colo, que lhe fora entregue por uma mulher que por mais que pelejasse não se lembrava de já ter nem sequer VISTO antes, que dirá de já ter FEITO com ela nada que pudesse dar naquele RESULTADO que ela abruptamente lhe enfiara nos braços, com aquelas terríveis palavras.

E agora? A mulher de cuja identidade ele não faz a mínima idéia simplesmente some, e ele está com um bebê estranho no colo, deixado por ela, que saíra (ela, não o bebê) sabe-se lá de onde, e que fora sabe-se lá pra onde. Está convencido de que a paternidade por ela alegada não tem a mínima chance de ser verdadeira.

Passa-se algum tempo. O bebê chora. Ele adivinha: é fome! Providencia o que considera adequado para alimentar seu “filho” (ou “filha”; nunca a diferença entre os sexos lhe pareceu fazer menos diferença). O que ele tem que fazer agora é cuidar do bebê. Tudo lhe parece o pior dos pesadelos. “Como é que pode, logo comigo! Logo agora! Tão assim, do nada! Tão do nada, mesmo!”.

Sem idéia de o que fazer, vai fazendo o que pode a cada nova urgência apresentada pela situação. Segue como pode cada coisa que sua precária intuição masculina sugere. Só agora percebe quanta utilidade existe naquele famoso sexto sentido que, ao que tudo indica, só as mulheres têm, mesmo.

O bebê volta a chorar. Ele calcula que fome ainda não deve ser. A última refeição fora só há uns poucos minutos, coisa de meia hora ou menos. Dá uma espiada dentro da fralda. Fraldas limpinhas para troca, o bebê tem. Ou foram deixadas pela misteriosa mãe, ou compradas ali pertinho pelo improvisado pai. O que vê confirma-lhe a suspeita. Numa atrapalhação que o excesso de cuidado só faz aumentar, ele faz a limpeza daquela bundinha tão minúscula e de uma cor qualquer, desde que plausível para uma combinação da sua com a daquela mãe. Na troca de fraldas, toma incurioso conhecimento do sexo do bebê, e isso não lhe diz absolutamente nada. Mas vai se afeiçoando cada vez mais àquele ser, enquanto desempenha cumulativamente o papel imputado de pai e o improvisado de mãe. E não é que reparando melhor o bebê até parece ser mesmo sangue seu? Como é que pode? Começa a perceber traço após traço de semelhança, uma incrível semelhança. Que é isso, besteira, todo bebê sempre parece com todo mundo. Mas vai experimentando um prazer inefável a cada vez que descobre naquela repentina criatura alguma nova coisinha que lhe pareça sua. “É a minha cara! Se fosse mesmo meu sangue, talvez nem parecesse tanto comigo”.

E por falar em consangüinidade... Não conhecia mesmo a mulher, nem sequer no sentido de, ainda que vagamente, saber quem era ela, que dirá naquele sentido mais antigo ainda, o bíblico, de tê-la conhecido, e de ela ter concebido e dado à luz aquele bebê que lhe enfiara nos braços sem mais nem menos, dizendo aquilo e depois sumindo na poeira.

O bebê simplesmente não poderia ser despachado de maneira que lhe viesse a trazer problemas futuros de consciência. Isso não, mesmo. A figura exata da mulher vai ficando cada vez mais imprecisa, mais dúbia em sua memória. O que permanece sempre perfeitamente nítido é só aquela voz inequivocamente carregada de uma absurda certeza, mas ainda assim certeza, sem a menor dúvida. Rumina todas as idéias possíveis e pensáveis sobre que providências tomar agora. Tudo lhe parece uma absurdidade só. O tempo vai passando, e ele precisa fazer alguma coisa definitiva sobre o destino daquele “filho”. Por fim, ainda que confuso e contrariado, considera assumir o bebê, fazer-se seu pai mesmo, em vista daquelas insanas circunstâncias. Porque não? Adotaria a criança. A idéia mal bate e já começa a seduzi-lo. Não acreditava de jeito nenhum em destino nem em nenhuma dessas besteiras do gênero, como vidas passadas ou futuras. Vida para ele era só essa, a (pra ele) real e que ele conhecia mal e parcamente. O resto, se algum, era pura especulação, puro delírio. Tremenda ironia então do inexistente destino aquele bebê trazido por uma louca que a essa altura do campeonato já não fazia muito sentido esperar rever. Sumira, desaparecera.

Decide-se, enfim, pela adoção, e começa a aconselhar-se com todos os profissionais que a situação justifica. E tome de advogados, de assistentes sociais, de conselheiros tutelares, de psicólogos, de enxeridos de todo tipo, de tudo, enfim. Pergunta daqui, indaga dali, informa-se cada vez melhor antes de dar o passo definitivo no sentido de assumir aquela paternidade imputada com tamanha ênfase, tão inesperadamente. Sai boquiabrindo todo mundo a quem relata ou menciona o fato.

Nesse fala-e-ouve, sugerem-lhe um teste de DNA, só para tirar mesmo qualquer teima. Primeiro ele estrila, convencido que estava de não conhecer mesmo a tal mulher que o acusara de ser o pai do agora seu bebê. Vasculhara de tudo que é jeito a memória para o período relevante, nada ali encontrando que o levasse a ver proveito na despesa em que certamente incorreria para tirar tal prova negativa (desnecessária e inútil, no fim das contas).

Contudo, vai sendo aconselhado cada vez com mais insistência e por mais pessoas a fazer o teste. Até que se rende. Entendidos no assunto recomendam-lhe dois laboratórios dos mais conceituados (e caros, claro), em dois continentes. Envia a ambos as amostras, na mais rigorosa conformidade com todas as instruções recebidas. Tem toda essa trabalheira e ainda gasta uma baba! Mas enfim chegam, quase juntas, as duas respostas que são no fundo uma só e a mesma. Estava pra lá de confirmado. A tal mulher não cometera qualquer erro, nem gramatical nem semântico, ao proferir aquela terrível última palavra que ainda ecoava em seus embasbacados ouvidos: “...teu!”.

Foi assim que passaram a constar na certidão: o nome completo do pai, um outro que ele escolhera para dar ao bebê juntamente com o seu sobrenome, e no lugar onde normalmente entraria o nome e alguns dados da mãe, apenas a expressão “mãe desconhecida”. Pelo que ouve no cartório, seu caso não tem precedentes.

E ele continua sem entender como poderia ter dado início a essa história, ter protagonizado uma cena tão interessante de se protagonizar seja na qualidade de personagem, ou na de ator, ou mesmo na de pessoa da vida (para ele) real, contracenando com aquela mulher que, a bem da verdade, dificilmente ele esqueceria tão completamente assim, e ainda por cima em tão pouco tempo. Não mesmo. A própria cena provavelmente envolvera ensaios e tudo o mais, caramba. Como afinal teria feito aquilo? Dormindo? Hipnotizado? Em transe mediúnico? Chapado? De que jeito, meu Deus do céu? Nada faz o menor sentido. A pergunta se torna um chicote hiperativo. Nunca vendera, muito menos doara porra nenhuma pra bancos de esperma. Mas foi exatamente assim que a certidão do bebê ficou. Lá está ela. Pode ser vista e lida pela mulher, caso ela decida reaparecer do nada e a qualquer hora, como costuma; ou por ele próprio, mais outra vez; ou pelo próprio bebê, depois de alfabetizado, bem como por todos os demais personagens ali presentes o tempo inteiro, mas que, propositadamente implicitados pelo contista, viram-se obrigados a guardar o tempo inteiro aquele profundo, aquele tumular silêncio de meros espectadores.

domingo, 15 de julho de 2012

Pergutinha Básica

A meus leitores, seguidores e colaboradores:

O QUIOSQUE DEVE CONTINUAR COM SUA VARIEDADE EM SABORES ELEGANTES E FRUTÍFEROS NA LARGA ESCALA DAS CRÔNICAS E SUAS REFINADAS LINHAS, OU DEVE LACRAR AS PORTAS PARA UM BALANÇO GERAL?

Essa pergunta vai em consideração a todos que participaram de alguma forma neste espaço que foi criado por mim e que teve grande aceitação naquilo que se propunha. Entretanto, minha vontade é baixar as portas, mas antes disso, devo respeito a vocês que comigo compartilharam de minha idéia inicial.
Portanto fica aberta a sessão de comentários e até de votação para que o Quiosque continue no ar.

Obrigada

Lu Cavichioli