No Balcão do Quiosque

segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

E faz tanto luar...



Lá fora um luar deslumbrante, cá dentro uma solidãozinha doída... Se eu não tomar cuidado, esta vai ser mais uma daquelas noites em que o choro vai querer lavar a alma...
A casa já quase em silêncio, a música tocando baixinho, entrando pelos ouvidos, mexendo com o coração...
A saudade, companheira de tantas noites vazias, aproveitando-se de um momento de descuido, vai chegando de mansinho, instalando-se na poltrona ao lado, sorrindo, como se chegasse para adoçar a noite, mas trazendo no olhar um que de impiedade... E, mansamente, vai acabar por me envolver colocando diante de mim um sorriso, um doce olhar, a mão cheia de ternura, o abraço de aconchego, a voz quente, a companhia, tantas histórias, tantos sonhos, tantos risos e tantas lágrimas, misturando  sentimentos  na dor da ausência. Melhor espantar logo essa saudade.  
Não, saudade, não quero sua companhia nesta noite de tanto luar... Amanhã talvez chova e em noite de chuva sempre gosto de me enrodilhar em seu aconchego, até gosto de sua companhia. Mas hoje?... Ah, não... Hoje não. Todo esse luar espalha uma tão doce magia, que conduz a alma, inexoravelmente, aos sonhos. Em noites assim, almas inquietas, como a que mora em mim, abrem-se em devaneios, ganham asas e voam entre hemisférios e continentes, em busca de sonhos há muito perdidos. E nesta noite, por influência de Dona Lua, prefiro libertar minha alma, partindo suas amarras, deixando-a voar livremente, a permitir que mergulhe na saudade, na dor, no vazio da ausência...
Va-se embora, saudade, por favor...  Volte amanhã, minha nem sempre desejada amiga, se não fizer tanto luar...

domingo, 30 de janeiro de 2011

Jardins Suspensos



Navegando sobre a dualidade: " Homo-Sapiens / Modernidade"- desaguamos no espetáculo da vida, onde o protagonista nos espera com as luzes da ribalta acesas e a platéia farta de tanta podridão!

É sabido que tempos complexos passam bem debaixo de nosso nariz e nós nada fazemos, porque estamos, (ou) somos impotentes diante do caos que se instalou sobre as vertentes dos valores.

Dos Jardins Suspensos da Babilônia, enxergamos uma Sodoma e Gomorra dos tempos modernos estampada nas telas, telinhas e telões. Escancarada, sorrindo cinicamente, deturpando nossas crianças e nossos jovens. Maculando a tábula rasa - intrínsinca e genial do nascimento.

Tempos Bárbaros!
Um século recheado de impunidades, que abre os portões para a chegada triunfante de um novo tempo, que mostra seu rosto retorcido, desgrenhado e violentado.

Vítimas estão dos falsos moralistas, das impunidades desmedidas, dos anticristos e dos engomados colarinhos brancos.

O que esperar de um mundo quase falido, de uma sociedade que claudica ante bestas-feras?

by Lu C.

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

O cego

Havia um reino onde seus habitantes eram todos tecelões. Não conheciam outra atividade. Teciam vestes do linho abundante cultivado nos campos vastos e generosos. Erguia-se o sol e os tecelões já prontos, fiavam mergulhados em serena e profunda concentração. Suas vestes era o que existia de mais importante em suas vidas. Vestir-se era uma arte; e também uma ciência. Tanto que para cada fase da vida era meticulosamente estudado a tecedura com variações de tramas que se alinhavam adequadamente ao corpo de cada habitante.

Certo dia, distraidamente, um andarilho adentrou os limites do reino e foi ter em pleno centro da sede do reinado. Imediatamente chamou a atenção de todos pois algo incomum se apresentava. O andarilho estava nu; completamente sem vestes. Um coro de Ohhhhhh!!! ... das senhoras e dos mais pudicos senhores, se fez ecoar. As damas escondiam os rostos das crianças na intenção de evitar que elas tomassem conhecimento da real natureza existente por debaixo das vestes. Afinal, nunca naquele reino alguém fora visto sem suas vestes. “Que infâmia!” diziam todos.
O caminhante se manteve parado com o semblante sério direcionado para onde o nariz apontava. Nenhuma piscadela, nenhum gesto facial direcionado para direita ou para a esquerda.

Em meio aos apupos e achaques da turba, uma criança puxando a veste da mãe, observou em voz alta:

— Ele é cego! Ele é cego!
Imediatamente todos pararam com a balbúrdia e focalizaram seus olhares para o calejado andarilho. Estrondosos risos se fizeram ouvir por todo entorno da sede central.
De repente o andarilho sério sem esboçar nenhum traço do mais leve sorriso, disse:
— Saudações a todos. Digam-me, em que região me encontro?
— Adentrastes desapercebidamente no reino dos tecelões — disse uma voz empostada do alto da escadaria da sede.
— É mesmo? Ora, nunca ouvi nada a respeito de tal reino. Como é por aqui? Podeis descrever-me?
— És desprovido da visão por nascença meu caro peregrino sem rumo? — indaga a voz.
— Sim sou. Nunca vi a luz do sol nem das estrelas. Não sei que cor tem o céu. Nem ao menos tenho conhecimento do que possa significar isso que chamam de cor.
— E como podemos lhe descrever algo ao qual não tendes e nem podes ter nenhuma referência visual?
— Mas eu posso sonhar. E é nos sonhos que busco minhas referências. Certa vez sonhei que estava em queda livre como uma pedra que despenca dos rochedos. Ao cair, senti minhas costas cravadas por várias formas pontiagudas tão finas como agulhas. Alguém então me disse que eu havia caído em cima de um roseiral. E que todas as rosas ali plantadas eram vermelhas.

Dessa forma associei a dor profunda com o vermelho das rosas.
— Mas que forma estranha de ver as coisas! Porque tem que ser através da dor? Porque não através do perfume? — redarguiu alguém na multidão.
— É fato, concordo. Porém quem me garantiria a autenticidade do perfume? A dor a qual me refiro não é exatamente uma dor física, mas, é a que me deixa consciente. Consciente eu “vejo”; e “vendo”, sei distinguir sonho de realidade.
— Essa é boa mesmo! Como pode você sendo desprovido da visão distinguir o que é sonho e o que é realidade?
— Você que tem a visão, e que pelo visto sabe bem discernir o real do sonho, poderá, talvez, entender o que tentarei explicar — disse o andarilho.

— Ótimo, então explique-me; sou todo ouvidos e olhos... E a multidão desabou em gargalhadas após essa irônica e mordaz resposta.
Sem se abalar, o peregrino calmamente expôs suas idéias:
— Amigos, nesta existência, nasci sem poder ter o privilégio de enxergar; ver o mundo em todo o seu esplendor com sua rica natureza; mas nem sempre foi assim. Houve uma era muito antes de nascer e morrer, em que minha visão era total e perfeita. Tudo e a todos minha visão alcançava e penetrava; tal era esse dom que com a simples pressão de minha vontade, poderia aprofundar-me tanto micro como macrocosmicamente qualquer recanto de vida; maravilhava-me descobrir mundos em uma partícula atômica; depois dava saltos visionários que abrangiam os quatro cantos do infinito macrocósmico. O alcance dessa visão não apenas enxergava mas criava vida, criava mundos.

Porém em certa ocasião voltei meu dom para um domínio onde a visão que tive foi de meus próprios olhos olhando a mim mesmo. Enamorei-me do que vi; e o que vi fez surgir em mim um sentimento que nunca houvera experimentado: o poder. E do poder veio a vaidade e da vaidade algo endureceu no âmago do meu ser. Nasceu a centralização em mim mesmo. Isso afastou-me da luz. Ficar cego foi uma questão de tempo. Eu que só a eternidade conhecia, perdi algo que vocês tentam copiar mas não atingem: a veste sem sutura.

— O quê! Você possuía a veste sem costura? Estamos tentando há séculos! Nossos antepassados deixaram-nos indicações e diretrizes escritas em longos livros; escolas surgiram para ensinar várias gerações mas nossas melhores vestes desfiam com o tempo e perdem sua alvura. Conte-nos qual a técnica, o conhecimento para confeccioná-la sem que um só fio se entrecruze na costura? Mas espere... você acabou de dizer que nasceu sem a faculdade da visão. Como então pode dizer, que nem sempre foi assim?
— Em meus sonhos, eu posso enxergar. Só que as visões são de uma realidade que vocês não enxergam. Para mim é tudo muito claro; para vocês é como se fossem todos cegos.
— Então você poderá nos ajudar a tecer a veste sem costura.
— Minha única ajuda pode ser ensinar a vocês aquilo que vocês mais temem.
— O que nos poderia ser tão temeroso além do fato de nossas vestes não perdurarem muito tempo?
— A vossa nudez. Enquanto não abrirem os olhos para o que as suas vestes na verdade escondem e não simplesmente cobrem, será em vão toda essa cultura tecelã. O que na verdade chama de vestes, não passa de trapos, andrajos de uma vergonha “civilizada”.

Dizendo isso diante de olhares boquiabertos, desabou ao chão duro como rocha.
Ninguém se mexeu um milímetro por aquele corpo estatelado.
Então a criança se aproximando disse:
— “Ele voltou a enxergar”.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Medo

Meu filho Lucas diz que tem medo do escuro e prefere que deixe as luzes acessas do banheiro, para iluminar um pouco o quarto. Todos temos medo de alguma coisa, mas quando somos crianças confessamos aquilo que nos dá medo.Adultos tem medo e com o tempo o medo é classificado por psicólogos e psiquiatras. Adulto que tem muito medo, precisa se medicar. E essa grande verdade nos faz ter medo de confessar o que nos amedronta. Para todos os tipos de medo, uma terapia, uma solução farmacológica e não acredito que isso funcione.Antigamente tudo era mais simples, pois nem tudo era uma nova forma de doença. O medo faz parte da pessoa. Não falo no medo que te tranca em casa e te afasta do convívio social, mas o puro medo, simples.Eu tenho medo do escuro também, não gosto da escuridão... Algumas vezes perco o ar olhando o nada do escuro.Tenho medo de dirigir. A simples menção de segurar uma direção faz passar um filme em minha mente, onde além de causar um acidente seguido do maior engarrafamento da América Latina, me vejo saindo do corpo e gritando para todos: " Oi! Eu estou aqui!".Tenho muito medo de morrer. A morte em si, essa não me dá medo... Mas tenho medo de deixar quem eu amo. Muito medo de deixar meu filho, meu marido e nunca mais sentar para conversar na sala com meu pai ou com a mãe na cozinha. Soma-se ao medo de morrer, o medo de contrair uma grande doença, como o câncer por exemplo. Não sei se eu me sentiria bem careca ou tendo enjoos o dia inteiro. Não sei como viveria se recebesse um determinado tempo de vida. Se viver sem saber quando vai se morrer é um tiro no escuro -- 'encarável', por assim dizer --, imagine viver sabendo quando vai morrer.Tenho medo de ladrão, assaltante, sequestrador e das drogas. Tenho medo de armas, de pessoas mal-encaradas e de indivíduos que caminham de forma suspeita.Tenho medo de deixar a casa sozinha, muito medo de que meu gato Juarez não volte para casa e medo que Heitor, o cachorro, fique doente novamente.Tenho medo de não conseguir me controlar quando devo, e medo de tomar choque no banheiro.Morro de medo que algo aconteça com as pessoas pessoas que mais gosto. Muito medo que alguém faça alguma maldade a meu filho.Os medos movem a vida diferente. Nos fazem ter mais cuidado e ser intensos. Sou uma pessoa intensa que acredita nas pessoas mas duvido um pouco delas. Sou equilibrada entre a bondade e a maldade, tenho consciência que o mundo unido, belo e florido é utopia.Alguns dizem que quem tem cu, tem medo. Como o cu faz parte da vida dos seres viventes, concluo que todos sentem medo de algo. Na verdade, quem respira tem medo.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Celular

-...Vai pegar o que?
Olha Beltrano, eu arrendei o buteco pro Cicrano por mil conto por mês, mas tudo o que tá lá é meu.


- bzblbzbzbzl bzbzlbbz bzbzlbbl...


- Não meu irmão, eu sô teu amigo, mas se você pegá qualquer coisa de lá, vai tá tirando de mim."


- bzbbbzbzzl bzzbbllzbzbz bbbbz bblz...


- Não, eu não quero teu prejuízo, mas eu arrendei o buteco com tudo dentro. Ele não tem nada lá. Se tá te oferecendo e você pegá, vou dá parte de você na delegacia. Tudo o que tá lá dentro é meu. As geladeira, o fogão, as estufa...tudo é meu. Ele não pode te oferecê nada.


- bz bzbz bbzb bzbzbzzbbz, bzbz!...


- Irmãozinho, dá teu jeito de recebê, mas sem pegá nada meu.


- Bzzznnznzznnnfdsm zmzmmsmsmzmz...


- Então vão fazê o seguinte: Eu tô ino pra Bangú agora. A gente se encontra lá pra cunversá.


- bzbbzjcj bbzbz...


- Tá tranquilo, a gente se fala quando eu chegá.


- bbzbzl...


- Outro.

Essa história não tem nada a haver comigo. Aliás, eu nem precisaria saber dela. 
Na verdade eu não queria conhecer essa história, mas eu conheço.
O resumo é óbvio e simples de deduzir.
Então vamos lá:
Um sujeito alugou ou arrendou um bar por uma mensalidade de R$1.000,00 para o Cicrano, alegando que Cicrano tinha feito um excelente negócio e que ganharia no mínimo R$ 15.000,00 por mês no estabelecimento.


Cicrano por sua vez, além de não ganhar dinheiro com o pé sujo arrendado, não consegue pagar nem as contas, nem seus fornecedores. O único que recebe R$ 1.000,00 por mês é o "Mala do Senhorio" que lhe fez o arrendamento da espelunca.


Já Beltrano, é um desses fornecedores que sofrem com a inadimplência de Cicrano e está tentando receber algo, mesmo que seja uma geladeira velha e cheia de baratas.


Quanto ao "Mala do Senhorio"?
É o camarada que gritava ao celular com Beltrano, enquanto eu aguardava na fila do banco.


Marcos Santos

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Criança tem cada uma




Quando eu era pequena, minha mãe insistia em levar-me a velórios. Ela dizia que era importante conhecer "essas coisas" para eu ir me acostumando. E toda vez que isso acontecia eu me escondia embaixo da cama. Entretanto, era sempre descoberta, considerando que o medo era sempre maior que a imaginação.

Logo que chegavamos eu ia demonstrando toda a sorte de caretas bizarras, tantas quantas eu pudesse criar numa última tentativa de fazer minha mãe desistir levando-me embora. Porém, tudo era inútil. Sua mão em meu braço parecia mais uma prensa gigantesca esmagando meus ossos, fazendo-me sentar naqueles sofás toscos e mal-cheirosos. Eu ficava ali horas a fio; aliás, as piores de minha tenra vida. Sem contar, as vezes que precisava me sentar em outra cadeira - a do dentista.

Com os olhos meio revirados e sobrancelhas franzidas, eu olhava aparvalhada e apavorada aquele caixão preto, de alças douradas, que parecia bem maior que o normal. E sempre tendo a nítida e pavorosa impressão que o morto fosse levantar a qualquer momento e sair andando.
Coisas horríveis então começaram a passar pela minha cabeça, e levando a mão na boca eu pensava:

"Nossa! O que seria daquele defunto? Iriam fechar o caixão, enterrar bem lá no fundo daquele túmulo escuro e frio e...como iriam fazer para cortar as unhas dele? Sim, porque o falecido não poderia mais fazer isso, afinal já estava morto e ninguém mais iria vê-lo. Contudo, suas unhas continuariam crescendo, crescendo, e sairiam como farpas através do túmulo, erguendo-se em uma enorme floresta".

Sem pestanejar, eu olhava para aquelas pessoas em volta do caixão, achando que qualquer uma delas teria a solução para este enigma. O mais curioso é que eu não me atrevia a perguntar nada a ninguém, muito menos à minha mãe com medo de levar uns bons tabefes.

O cadáver continuava seu sono e eu encolhia os ombros numa atitude irônica pensando:
"Ah, prá que me preocupar com isso se da próxima vez eu encontraria um esconderijo infalível, ficando livre desses encontros chatos e tristes? Para que me incomodar? Os donos do cemitério que cortassem aquelas unhas, que certamente cresceriam sujas e escuras".

De repente, num gesto de coragem me levantei e do alto dos meus seis anos me aproximei de uma garota que chorava desde a hora que cheguei, cutuquei sua mão dizendo:
- Ei moça, você já cortou as unhas dele hoje?

by Lu C.

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Boas Novas!





Amigos, tenho notícias literárias: REABRI O EMPÓRIO DO CAFÉ LITERÁRIO.

Essa chamada convoca autores, amigos e seguidores, bem como os novos cronistas que aqui aportaram, seguidos dos neo-amigos do Quiosque.

A cafeteria está aberta e em breve a biblioteca abrirá suas portas.

Estarei a espera de todos na Sala de Leitura

Até lá

Obrigada

by Lu Cavichioli

Déjà Vu

Um ano depois e a coisa se repete. A tragédia do homem, a tragédia do ser humano, as diversas tragédias da sociedade. Mas o curioso foi a sensação de déjà vu. Por isso vou repetir exatamente o mesmo texto que postei a exatamente um ano atrás. 
Eu o intitulei de "Heróis":

Rio de Janeiro 16 de janeiro de 2010. 
Eu caminhava entre o banheiro e a cozinha, já no encerramento dos “trabalhos” daquela noite. Cruzei a sala. A tevê ainda ligada, me aguardava para que eu desse o click final no controle remoto. 
Enquanto bebia meu último copo d’água de um dia bem calorento, pude ouvir a voz do consagrado jornalista: “Vamos ver o que nossos heróis estão fazendo...”. 
Heróis? Pensei... De cara me veio em mente nossos valorosos bombeiros, mal saídos da  tragédia de Angra dos Reis, para serem enviados diretamente ao Haiti devastado. É... Esses são realmente nossos heróis.
Mas o consagrado jornalista falava, na verdade, de outro tipo de herói. Não o herói que nos enche de orgulho, que honra a nossa história. Não o herói, ou heroína como Zilda Arnz, que viveu para a entrega ao próximo, ao semelhante.  
Na verdade eram “heróis”, agora sim, entre aspas, que vivem tão somente para receber. “Heróis” capazes de passar dois meses sem fazer absolutamente nada para ninguém. Nada que não sejam intrigas, futricas, banalidades, futilidades...
A vida é feita de escolhas. Algumas pessoas, como o povo atingido pelo flagelo no Haiti, dispõe de pouquíssimas ou nenhuma. Mas existem aqueles que têm a glória de dispor de várias escolhas. Escolhas essas que, aliadas à sorte e ao talento, podem levá-las onde elas quiserem. Ao caminho da honra, da nobreza, do reconhecimento, da consagração pessoal e profissional.
Pedro Bial fez sua escolha.
Se diante dos fatos e desafios apresentados à humanidade, ele prefere rasgar sua biografia e comentar a tamanho da bunda de uma “brother”, ou a relevância do selinho de duas “bibas”...bem... quem perde é a sociedade como um todo, mas a escolha é apenas dele, somente dele.
...E eu com isso?  Eu sinto vergonha, uma profunda vergonha.
O dinheiro é importante, mas não é tudo.

...E então?  Passado esse ano, como está a sua sensação de déjà vu?
Foto: Vanderlei Almeida/AFP (Notícias Terra - Tragédia da Região Serrana)

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Quo Vadis?

   Ocasionalmente eu uso a liberdade poética proporcionada pelos versos brancos, que não se submetem às algemas da rima ou à tirania da métrica. Mas confesso que prefiro, quando possível, cantar a música da rima seguindo o ritmo do metro. Parece-me que em mim o poeta "brada com mais vigor quando em cadeias / que quando voa livre de outras peias."
   A postagem original é de 3 de Fevereiro de 2010, no "Sete Ramos de Oliveira".
* * * * * * * * * *

   Houve época em que minha fome de leitura era insaciável. Desde os gibis infantis até a Bíblia, passando por obras de divulgação científica e de ficção, tudo era devorado. Os versos brancos que se seguem nasceram de uma combinação eclética de leituras de minha adolescência: "Nascimento e morte do Sol" (George Gamow), "Quo Vadis?" (Henryk Sienkiewicz) e o Livro do Gênesis, tudo temperado por um crescente interesse pela teoria do "Big Bang".


Quo Vadis?


Há tanto tempo...
Tanto, tanto tempo passou sobre tudo...
Tudo esvaiu-se na fumaça,
No pó,
No passado;
Tudo tornou-se neblina na lembrança dos homens,
Tornou-se tudo neblina na memória da eras,
Do espaço,
De Deus.
Nada existia então.
Não existia a Vida,
Nem o Tempo,
Nem o Espaço:
In principio erat Verbo.
E eis que surgiu um ponto,
Um ponto geométrico,
Sem dimensões;
Um nada.
Mas, nesse nada,
Rugia tudo:
Rugia o Tempo, na ânsia de marcar a sucessão das Eras;
Bramia o Espaço, querendo medir a distância entre os seres;
Gritava a Vida, aspirando a determinar a soberania do Amor.
E o ponto explodiu em fulgurações cintilantes
Que levavam consigo o Tempo,
O Espaço
E a Vida.
E surgiram majestosas as galáxias,
E os sóis,
E os planetas.
Surgiu a Terra.
A Terra era informe e nua, e o espírito de Deus pairava sobre as águas.
E nas águas, a Vida fundou seu reino;
E vieram os peixes,
E os anfíbios,
E os répteis ,
E os mamíferos.
Surgiu o Homem.
Surgiu, então, na Terra, uma centelha da divina sabedoria na inteligência do Homem.
E vieram os povos,
E vieram as nações,
E as civilizações;
E veio também a paz,
A amizade,
A fartura
E o amor;
Mas veio também a fome,
A guerra,
A miséria
E o sofrimento.
E eis que chegamos hoje à encruzilhada fatal:
Quo vadis, Homo?
Aonde vais, Homem?
Aonde vais?


   Hoje, tantos anos depois, tenho minhas dúvidas quanto à validade da teoria do Big Bang. Mas isto fica para outra ocasião.

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Gafe

Sentados à mesa, num desses restaurantes entupidos de grã-finos em Porto Alegre, o jovem casal conversava: - Ana, tu tá com aquela tua calcinha vermelha? O garçom era um sujeito branquelo e esticado, mantinha a cara bem fechada fazendo com que os clientes o respeitassem. – Ai Marcio, não começa! Ana era daquelas gurias de pura linhagem, descendência européia, bem criada em berço de ouro e mármore, podre de rica, bem vestida e bem gostosa, beirava a perfeição, filha de fazendeiro, nunca andou a pé, nem de ônibus, estudante de administração em faculdade particular; esse naipe de mulher existe no Rio Grande do Sul em grande quantidade e não é couro pra qualquer catinguento passar a mão. – Tira Ana, e me dá aqui! Marcio não era diferente! Bem de herança, principiado nos negócios do pai, aspirante a milionário, nunca andou a pé, nem de ônibus, sangue europeu, estudante de administração em faculdade particular; esse tipo de cara existe aos montes no estado do Rio Grande do Sul e mete a mão onde sente vontade. – O que tu disse? O garçom esticou o pescoço fino em direção àquela mesa devido ao tom levemente alterado que Ana usou ao fazer a pergunta. – Quero que tire a calcinha e dê na minha mão, de presente. O ambiente era funéreo, a luz baixa, as pessoas cochichavam, somente o tilintar das pratas e cristais quebravam a monotonia do lugar. – Ah! Bom! Tu só pode tá louco né... Te liga guri! O garçom, que se parecia muito com um ganso, ou uma garça, ou um flamingo, ou qualquer dessas aves pescoçudas de banhado, inclusive no modo de andar, aproximou-se da mesa do casal a fim de bisbilhotar o assunto dos namorados. – Eu quero a tua calcinha vermelhinha agora! Marcio era atrevido e estava tão excitado que nem se dava por conta da aproximação do funcionário. – Tu tá conseguindo estragar o meu jantar Marcio! Já tinham bebido uma garrafa de prosecco e estavam ambos quilômetros adiante de Bagdá. – Tu nunca me negou nada Aninha, faz isso pro teu benzinho faz... O garçom discretamente observava os cabelos sedosos, claros e bem cortados da moça, era um desbunde, mesmo estando acostumado à beleza das gaúchas incríveis que ali freqüentavam, o atendente se deixava impressionar pela beleza dessa minha personagem. – Dá pra ti parar? Marcio enfiava seu pé bem calçado em couro legítimo por entre as pernas brancas da namorada que se arrepiava e não parava quieta na cadeira. – Eu quero a calcinha! A essa altura do campeonato todos os demais clientes estavam percebendo e observando – com etiqueta – a indiscrição do casalzinho. – Marcio, pelo amor de Deus guri! Um casal de velhos endinheirados levantou da mesa com ar de indignação – os leitores sabem como são nojentos esses velhos apoderados. – Eu quero só sentir o cheiro bom da tua... – Pára Marcio! Dessa vez a mulher gritou! O garçom interferiu: - Senhores, infelizmente sou obrigado a solicitar que se retirem! – Viu Márcio, viu o que tu fez! Que vergonha! Minha linda personagem disse isso com cara de choro. – Bah! Mas tu é bem chata mesmo hein! Marcio atirou duas notas de cem sobre a mesa, virou as costas e saiu dizendo: - Pode ficar com o troco! A mulher irritadíssima atirou dentro do prato a calcinha vermelha pequenininha – coisa mais bonitinha – que trazia fechada na mão direita! E se foi gritando: Marcio, espera aí seu filho de uma...

domingo, 9 de janeiro de 2011

Duplo Sentido



Do alto da escada rolante e o vi, era lindo!
Finalmente eu o encontrara depois de uma incansável procura. Todos o olhavam, mas não como eu, pois estava enfeitiçada.

A escada rolava em direção ao piso térreo e eu não me dava conta disso, era como se estivesse flutuando e fosse descer exatamente onde ele estava.

Curiosamente ele também me olhava. Parecíamos feitos um para o outro, e que ao nascer ele já esperava por mim.
Tinha um brilho especial e as pessoas o tocavam levemente. Que ciúme!

Eu continuava a descer... Quando enfim coloquei meus pés no térreo meu olhar estancou. Estava mais perto agora. Meu coração disparou e senti calafrios. Já meio sem forças percebi que ele estava mais perto e seu brilho me atraia descaradamente.
Sem tardar eu o toquei. Seu coração funcionava perfeitamente e ao menor toque ouvi sua voz.

A boca se abriu e eu pude ver seu interior, seus músculos e nervos, todos reluziam. Sua pele metálica era fascinante.
Finalmente ele me abraçou e pude sentir toda sua maciez e aconchego, percebendo que dali em diante seríamos inseparáveis.

Eu e meu automóvel!

by Lu Cavichioli

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Nas madrugadas do tempo...


Acordou com o barulho do vento que dançava entre os galhos ressequidos do bosque e, imaginando o frio que deveria estar fazendo lá fora, enrodilhou-se entre os lençóis, numa tentativa inútil de voltar a dormir. Era madrugada e ela sempre tivera um quezinho pelas madrugadas quando, a casa em silêncio e a cidade semiadormecida, davam-lhe a falsa sensação de que a paz reinava sobre o mundo, sobre os homens.

Sem conseguir voltar a dormir, saiu da cama e, apanhando o robe que repousava sobre a poltrona, envolvendo-se em seu aconchego, dirigiu-se até a janela. Ao abrir as cortinas deu com a beleza da neve caindo sobre o gramado, iluminada apenas pela fraca luz que vinha do poste de iluminação colocado quase em frente a casa.

E sem saber bem porque, viu-se em outra madrugada insone, diante de uma outra janela, depois de acordada pelo zunir do vento que corria por entre as casas daquela rua antiga, prenunciando uma tempestade de verão. Reviu-se jovem e cheia de sonhos, sem a menor consciência do que a esperava pelas esquinas do tempo, dos longos caminhos que ainda haveria de percorrer até chegar aquele momento.

Naquela outra madrugada, lágrimas escorriam-lhe pelo rosto, lavando-lhe a alma daquela tristeza que lhe parecia sem fim e que, a luz do tempo, demonstrou ser nada mais, nada menos, do que uma tempestade num copo d’água... Ah, as doces paixões da adolescência!... Ah, a primeira paixão, quase sempre não correspondida, quase sempre inesquecível... A imagem dele ainda bailava em sua mente, congelada pelo tempo, numa linda figura de príncipe encantado... Seus olhos castanhos, seu sorriso límpido de quem anda de bem com a vida, sua voz, seus cabelos, seu porte... Vindos através dos anos, rodopiavam em torno dela, revestindo-a de saudade... Saudade dele, dela, da juventude que um dia habitara aquele corpo alquebrado e que ficara lá longe, dos sonhos que a acalentaram, de tudo o que o tempo reteve em seus caminhares...

Sentindo o frio da madrugada, deixou a janela, sentou-se na poltrona, encolhida, cobrindo as pernas com uma manta e, antes de abrir o livro que a esperava sobre a mesinha lateral, ainda ficou uns minutos cogitando sobre o quão bom era sentir tão doce saudade... Tão bom ter tais momentos guardados dentro de si, mostrando que a vida foi vivida com intensidade, com paixões, com sonhos, com esperanças, com amor... Lembranças que mostravam claramente que valera a pena cada passo percorrido nesse longo caminhar... Que razão tinha nosso Fernando Pessoa ao afirmar que “tudo vale a pena se...”


Dulce Costa

(Numa madrugada de dezembro do ano de dois mil e onze)


quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Inocência

INOCÊNCIA

Imagem: Josephine Wall (direitos reservados)
Relembro hoje aquele dia ensolarado
Em que tu me ofereceste a rendição;
Quando em vez de te fisgar eu fui fisgado
No teu jogo tão sutil de sedução.

Derrotei  tuas negaças,  teus receios,
Desnudei teus pensamentos indiscretos,
Conquistei os altos cumes dos teus seios,
Visitei os teus lugares mais secretos.

As mãos minhas escalaram róseos montes
E meus dedos deslizaram por ravinas;
Os meus beijos encontraram tuas fontes,
Meu desejo cavalgou pelas campinas.

Minha alma se perdeu em teus cabelos,
Minha voz em teus gemidos se esvaiu;
Meu abraço calou todos teus apelos
E o meu ser em teu ser se consumiu.

Explorei teus sentimentos mais profundos;
Meus sentidos no teu corpo se afogaram.
Descobri os quatro cantos de teus mundos,
Minhas pernas com as tuas se trançaram.

Invadi então teu templo mais sagrado
E prostrei-me ante o altar de teu prazer;
Oferendas lá depus de apaixonado,
Em  penhor de todo este meu querer.

E assim me despedi da adolescência
E ingressei num novo mundo sedutor;
Com o sexo me roubaste a inocência
E depois ma devolveste com o amor.

Ó tu, que me conduziste às alturas!
Ó tu, que me levaste às profundezas!
Ó tu, que me  trouxeste tais loucuras!
Ó tu, que me exorcisaste as tristezas!

Bendita sê! Bendita a dita minha,
Pois que em meu coração inda és rainha!

Niterói, janeiro de 2011
Rodolfo Barcellos
Imagem: uso não comercial, conforme os termos do "site" da autora.  Ver: http://www.josephinewall.co.uk/licensing.html

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Reflexo de Bastidores



Quando acordamos pela manhã e vamos para o banheiro, a primeira sensação que temos ao olhar para o espelho
é um susto. O que vemos, com certeza não nos agrada. Não se engane. Olhe direito. Olhe novamente. Vai ver que o que digo é a pura verdade. Vemos um reflexo nada animador, principalmente se sua noite de sono não foi tão boa assim ou se suas contas estão todas atrasadas e você não tem como saldá-las. Percebem-se rugas de expressão, ou seriam rugas de
preocupação? Daí você torna a olhar e joga água como se quisesse limpar todas elas e vir escoar ralo abaixo. Encontra uma espinha, ou um cravo, tenta apertar, sente dor e desiste. Aposto como você se pergunta o que há do outro lado do espelho, não é? Já pensou nisso? Será que aquela imagem que te olha do outro lado é você mesmo? Há controvérsias?! Provavelmente ela será o que quisermos que seja. Há anos que você olha para este espelho, já percebeu como é que seu reflexo lhe envia mensagens? Então preste atenção. Olhe bem, pausadamente, veja as transformações escancaradas que surgem, no cabelo, na pele, no corpo... E isso ainda não é nada comparada às transformações internas, aquelas no self, no ego, no íntimo.

Já chorou em frente do espelho? Aposto que sim. Viu como as lágrimas rolam lentamente e pingam na roupa, no chão?
Assim é o tempo que passa lento, como um conta gotas.
O que realmente vemos no espelho? Alucinações? O que há do outro lado?
Acho que outra dimensão. Uma dimensão refletida, onde não podemos entrar. Uma dimensão que guarda nossa imagem
anterior à que vemos hoje, e que nos torna impotentes diante do real.

O espelho é um grande "porta-treco" da ilusão. Lá guardamos o que fomos um dia, e que já não podemos apalpar ou sequer ver, porém, imaginar. Que bom que esse poder nos foi dado!

O espelho é uma espécie de vilão, é ele que mostra em cada trejeito, em cada ruga costurada no rosto, todo medo que temos de envelhecer e nos tornarmos um objeto esquecido, quer pela sociedade, quer pelos entes queridos. E aí vamos para a gaveta dos esquecidos e ficamos empoeirados e antigos. Nosso vocabulário há muito não são mais pronunciadas, nossas idéias, todas ultrapassadas, nossa visão, agora, embaçada, precisando de lentes até para olhar no espelho. E tudo isso passa diante de você, rapidamente, todos os dias, impiedosamente.
Mas o que nos alivia é, que aprendemos e nos diplomamos, com louvor e louros, respondendo a todas as questões que a vida sabatinou. Aprendemos também que essa imagem um dia será finita, e a alma - IMORTAL!

by Lu Cavichioli
São Paulo 2011

O Projeto

Porto Alegre, verão 2010/2011

Poderia ser em qualquer lugar da cidade, não seria nem mesmo necessário que fosse em Porto Alegre, qualquer cidadezinha de beira de estrada serviria ou, resumindo, que fosse em qualquer canto do mundo. O importante é que fosse só meu. O espaço interno poderia ser qualquer coisa mediana, razoável, cinco por cinco, três por três, tanto faz, por ínfimo que fosse, o tamanho, sinceramente, não me importaria, não me importaria nem um pouco. O importante é que eu coubesse dentro. E a decoração? Bem, decoração seria totalmente dispensável, não que eu não goste de papéis de parede, pinturas abstratas ou figurativas, plantas e bibelôs, é, digamos que de plantas e bibelôs eu, realmente, não goste, mas a questão não é essa, o que quero deixar claro aqui é que pouco me importaria se fossem paredes sem reboco, piso de chão batido e telhado de zinco, não quero saber, a estética do ambiente é a última coisa que me preocupa. O importante é que eu me sentisse bem. Quanto a iluminação e ventilação eu até afirmo: estas sim são questões indispensáveis. Um ambiente arejado seria fundamental para mim, eu não sobreviveria sem uma boa porção de vento fresco na cara permanentemente, assim como a ausência de luz seria, da mesma forma, um infortúnio, a luz, em verdade, seria tudo, sem luz nada feito e, para tanto, seria de bom tamanho uma janelinha com venezianas e um bico de lâmpada – para as longas noitadas. O importante é que eu estivesse vivo. A mobília seria algo tri simples: uma mesa central, não precisaria ser uma mesa enorme nem muito alta, que bom que fosse uma mesinha pequena e baixinha, nem nova precisaria ser, uma de segunda mão resolveria meu problema numa boa, não me apego a detalhes e, também, precisaria de algo em que eu pudesse me jogar exausto, esgotado, fraco, alguma coisa que eu pudesse usar como leito de reposição de energias, onde eu pudesse tanto repousar de olhos abertos ou tirar um cochilo leve como morrer feito um porco babando e roncando. Creio que se não fosse possível dispor de uma cama, uma poltrona fofa daria conta do recado, ou uma almofada, é, taí, uma almofadona grande, quase do tamanho de um homem, o fato é que, fosse como fosse, eu estaria satisfeito, completamente satisfeito. O importante é que eu estivesse satisfeito. Pra encerrar, sobre a mesa eu poria um notebook, um computador comum, uma máquina de escrever, qualquer coisa que tivesse teclas ou até mesmo um calhamaço de papel e uma caneta ou lápis, não me interessa, juro, meu querido leitor, que não me interessa nada, nada, nada além de sentar, relaxar e viver o resto da vida inventando estórias.

Mais textos de Léo Santos? No blog Nota Preta.

domingo, 2 de janeiro de 2011

Navegar é preciso

   Há certas frases e expressões que, mesmo sendo concisas, carregam riquezas inesgotáveis. A origem da maioria delas se perde nas brumas da história de cada língua viva, mas de algumas é possível encontrar o registro de nascimento.
   Em 1325, Afonso IV assumiu o trono em Portugal e iniciou um intenso intercâmbio comercial com Florença. Como subproduto, a cultura toscana passou a ter grande - e duradoura - influência em Portugal. PETRARCA chegou a ser "clonado", duzentos anos depois, pelo próprio Camões - senão, vejamos:

Petrarca:
Questa anima gentil che si diparte,
Anzi tempo chiamata a l'altra vita...


(Esta alma gentil que agora parte,
Chamada antes do tempo à outra vida...)

Camões:
Alma minha gentil, que te partiste
Tão cedo desta vida, descontente...

   Pois foi também Petrarca que cunhou a bela frase (muitas vezes atribuída a Fernando Pessoa): "NAVEGAR É PRECISO; VIVER NÃO É PRECISO"
   Vejamos algumas acepções que ilustram a riqueza dessa frase:
   Acepção original, de Petrarca: "A navegação é uma ciência exata (precisa); a vida, não".
   Acepção de Fernando Pessoa, celebrando as grandes navegações portuguesas: "É necessário navegar; não é necessário viver".  Veja o poema em 

http://www.casadobruxo.com.br/poesia/f/navega.htm




   Para maiores detalhes sobre a origem da frase, consulte
http://cdclassic.com.br/navprec.htm
   Há inúmeros outros contextos que utilizam essa frase, completa ou pela metade. E eu peço ao leitor licença para apresentar minha própria interpretação: "Navegar é preciso; viver é navegar."
   O texto que se segue é uma transcrição revisada da matéria publicada no "Sete Ramos de Oliveira", em 18 de janeiro de 2010.  O significado de "preciso'' deixo a critério do leitor. E a imagem da nau vem de Portugal, bordada pelas mãos habilidosas de Amélia Costa, do "blog" Estados de Alma.



NAVEGAR É PRECISO
   Navegar é preciso. Remar contra a corrente nada resolve, e abandonar-se a ela pode ser pior. É preciso navegar.
   Navegar é conhecer as correntes e redemoinhos, as pedras e arrecifes, o vento e as marés, a enseada segura e a praia traiçoeira. É escolher um destino alcançável e planejar a rota em cada trecho. É estar preparado para o tufão imprevisto e saber contornar obstáculos intransponíveis. É saber usar o mapa e a bússola, o sextante, a barquilha e o cronômetro. Navegar, em suma, é saber chegar a salvo ao porto escolhido, mesmo sem o auxílio do GPS.
   Navegar pela vida não é diferente. Aprendemos desde a mais tenra infância a distinguir o alcançável do inalcançável, e como chegar aos objetivos mais tentadores. Conforme crescemos, nossos pais nos mostram os redemoinhos e escolhos da vida e nossos mestres nos fornecem os instrumentos de navegação - que mais não são que a educação formal que recebemos. E nós vamos nos aperfeiçoando na arte de navegar pela vida, começando pelas pequenas rotas lacustres e fluviais, e as linhas costeiras, onde os menos ambiciosos se acomodam, enquanto os aventureiros prosseguem até chegar à navegação de cabotagem e finalmente às travessias de longo curso.
   Mas nem todos têm a fortuna de nascer com o talento de um Torben Grael, e podemos vislumbrar muitas vezes um navegante solitário lutando contra a corrente ou dando voltas em um redemoinho. E nem sempre podemos socorrê-lo.
   Pois não podemos descansar em cada porto mais que o necessário para recuperar as forças, costurar as velas e reabastecer o navio. Sempre haverá uma próxima derrota* a ser planejada e vencida.
   Enquanto pudermos navegar.


* Derrota (Náut.): curso, caminho percorrido ou a percorrer