O dia amanhece como se eu estivesse empurrando um trem. Não foi fácil me levantar. As horas pesavam e o ombro de minha consciência, dolorida, carregou mais um peso do mundo. Faltava-me algo mas não sabia o quê exatamente. Um esforço hercúleo foi o que tive que fazer para lavar o rosto. Tinha que me olhar no espelho. Vagarosamente levantei o rosto para encarar-me. Rosto? Onde está meu rosto? NÃO TENHO ROSTO!!! Um pavor indescritível dominou o que, creio, ser eu mesmo. Levei instintivamente minhas mãos ao... seria rosto? Inútil esforço. Minhas mãos só existiam quando olhava para elas. Se tentasse tocar meu rosto sumido, elas também sumiam. Pensei: “estou morto?” Não, não estava morto. Sentia minha respiração e ouvia o arfar de meus pulmões. Ainda em meio a confusão mental, toquei levemente em meu coração. Lá estava ele em rápidas batidas como querendo dizer: “aqui estou eu, vivo, ao seu lado”. Não estava só. Tinha a companhia de meu coração, meus pulmões, minhas mãos e minha mente confusa. Minha mente? Posso pensar, pensei. Vou falar em voz alta o que estiver pensando. E soltei: “ONDE ESTÁ MEU ROSTO!?”. Ouvia nitidamente minhas próprias palavras.
Já sei. Vou sair às ruas e observar a reação das pessoas. Claro. Se tudo isso for real saberei imediatamente. Assim fiz. Peguei meu casaco, vesti meu jeans, calcei meu tênis branco sujo e fui para rua.
As pessoas passavam por mim e não me olhavam. Ninguém me olhava. Um casal de idosos taciturnos que caminhavam sem trocar uma palavra entre si, passaram por mim como se passassem por uma estátua desinteressante. Estava a ponto de gesticular propositalmente para chamar atenção ao primeiro que passasse.
Lá vinha um adolescente. Aquele jeitão desligado, desencanado me estimulou a um gestual qualquer que chamasse sua atenção.
— E aí brother, sabe onde posso... Nem terminei a frase e o garoto passou por mim como se eu fosse invisível. Invisível?
Foi então que percebi que eu apenas percebia. Eu era um “percebedor!” Existe isso? Não sei explicar mas eu falava e não havia voz; eu me movia mas não haviam membros que me conduzissem; eu pensava e via o que eu pensava... Sentia-me totalmente perdido diante dessa situação. Poderia correr, saltar, gritar, imaginar... e tudo isso não bastaria para me dar uma forma definida. Eu era e ao mesmo tempo não tinha como provar isso aos outros.
Cabisbaixo caminhei até o parque. Sentei-me, ou achei que estava me sentando, no primeiro banco vazio que encontrei. Diante de mim a visão de um lago salpicado de miríades de pontilhos resplandecentes. Isso me reconfortou. Entrei espontaneamente em um relaxamento sem corpo ou algo assim. A brisa massageava o que poderia ser meu rosto. O devaneio era inevitável.
— Você irá se acostumar. O tempo lhe será indiferente.
Disse-me uma voz quase que sussurrando em meus ouvidos. Se é que eu os tivesse.
— Quem é? — perguntei.
— Sou uma voz assim como você.
Devo estar ficando louco, pensei ou, disse isso a mim mesmo. Mantive-me surpreendentemente calmo. O suficiente para encarar a voz amorfa.
— De onde você é?
— Sou daqui, desse mesmo instante que o seu.
— Você é apenas uma voz?
— Sou se isso lhe deixa à vontade.
— Você sabe me dizer por que há apenas vozes e não formas ?
— Porque a realidade é feita somente de vozes. O mais são apenas formas dissimuladas.
— O que está acontecendo comigo?
— Nada de importante, que eu saiba.
— Como isso pode não ser importante?
— Calma, calma... se acalme
— Ok. Me diga o que acontece então com as vozes?
— Como assim?
— Ela duram para sempre ou isso em dado momento se acaba?
— Claro que se acaba. Ou você acha que uma voz se manifesta indefinidamente? Um dia todo esse vozerio silenciará por completo.
— E o que vem a seguir?
— O silêncio.
— Então é o fim?
— Não. É o silêncio.
— Qual a diferença entre o silêncio e o fim?
— O silêncio não se acaba. O fim, sim.
— Qual a utilidade da voz então?
— Só existe uma utilidade: entender o silêncio.
— E o que há de tão importante no silêncio?
— Nele, cessam-se todas as perguntas.
— Mas sem perguntas como poderei chegar à compreensão das coisas?
— As perguntas servem apenas para se chegar a conclusão que não se compreende as coisas.
— Isso não tem fim?
— Sim, tem.
— Onde se encontra então a compreensão das coisas?
— No silêncio.
7 comentários:
Cuida para que tuas palavras sejam melhores que o teu silencio.
Lindo texto.
Sou grata
Alzira
Lá , no silêncio, não precisaremos pensar no tempo, nos rostos, nem nada...Viveremos apenas, e por lá, não passaremos despercebidos... LINDO, Leandro.abração,linda semana,chica
O silêncio tem sabor de eternidade, pois não?
Obrigada, Leandro por nos lembrar disto!
Viagem e tanto, foi essa leitura. Tentei experimentar a coisa enquanto lia, achei um barato. De fato, não podia ver meu rosto e ninguém me via nem ouvia (felizmente). Muito bem, Leandro.
Bendito silêncio!
Ele vale ouro e seu texto também!
super beijo
Ahh, Leandro Soriano! Sempre fui fã dos seus escritos, que percebem com profundidade o rosto verdadeiro do ser humano, com essa filosofia tão lindamente Soriano.
Beijos.
Eu só interrompo esse silêncio que agora se instala para uma pausa também silenciosa, em que há o pensamento que se deixa ficar - calado.
Beijos
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