Nas palavras de uma língua, está encerrado muito da alma de um povo ao menos, o que fala esta língua.
Línguas há que são faladas por mais de um povo (como o inglês, o espanhol, o nosso português e algumas outras), bem como povos há que são falantes de mais que uma língua (como os canadenses, os suíços e alguns outros).
Cada língua tem, por assim dizer, suas "células" ou unidades constitutivas, a que costumamos chamar palavras.
Definir - ou mesmo simplesmente identificar - uma palavra nunca é tão fácil quanto talvez pareça.
Se quiser verificar, escolha um texto qualquer, escrito em num idioma que lhe seja absolutamente ininteligível. Tente agora contar o que ache serem suas palavras. Você contará naturalmente unidades gráficas limitadas por espaços, como fazem os editores de texto eletrônicos. Você terá feito uma contagem de espaços, mas não de palavras.
Só para ilustrar, digamos que a língua cem por cento ininteligível pra você é o alemão. Também serviria árabe, chinês, hindi, opção é o que não falta, pois todos nós sempre ignoramos a maioria das divinamene confundidas línguas existentes.
Em alemão, então, você contará como duas palavras cada verbo "trennenbar" quando este estiver com seu prefixo destacado. Isto porque a parte de base de tais verbos alemães aparece antes (às vezes bem antes) de seu prefixo separável, que vai lá para o final da sentença, antes do ponto ou seu equivalente. Tal estranheza vocabular afeta, para piorar as coisas, a maioria dos verbos alemães.
Assim, um verbo como "vorstellen" pode (e costuma) aparecer como "stellen (não sei o que lá) vor". O verbo "aufmachen" como "machen (não sei o que lá) auf". Esse "não sei o que lá" pode (e costuma) ser bem longo, também.
Por outro lado, compostos por vezes longos se formam muito frequentemente em alemão. Com um só desses "palavrões" teutônicos dá pra se dizer algo do tipo "a maçaneta da gaveta da mesa do gabinete do ministro de estado das relações exteriores", ou alguma outra esquisitice congênere, que naturalmente seria contado como uma palavra só. Mas é mesmo?
A contagem feita apenas pelas unidades demarcadas por espaços acabaria por refletir um número completamente falso, e bem distante do número real de palavras.
Existem coisa de seis mil línguas no mundo, e a esmagadora maioria delas são línguas ágrafas, ou línguas em que nenhum sistema de escrita existe. Quando se trata de identificar o que é e o que não é uma palavra numa língua dessas, vemos que a coisa realmente está longe de ser tão simples como nos parecia.
Vemos nos dicionários aquelas unidades lexicográficas chamadas verbetes ou entradas. Elas normalmente tratam de palavras isoladas, que ali vão definidas, explicadas e exemplificadas como tal. Isso nos dá a impressão falsa mas muito reforçada de que palavras isoladas são coisa que existe. Mas na verdade assim não é. As palavras só existem em associação umas com as outras, de acordo com muitas e bem complexas regras.
Mesmo quando utilizamos uma palavra só, há um bom número de outras a ela indissociavelmente ligadas naquele determinado contexto, que simplesmente ficam subentendidas.
Se dizemos só "fogo!" por convenção ou por medida de economia, sempre queremos dizer algo do tipo "comece a abrir fogo agora", ou então "faça logo alguma coisa para ajudar, que temos aqui um início de incêndio!"
As palavras encerram em si mesmas um enmorme tesouro, por vezes bem pouco explorado.
Se averiguarmos a formação, a origem, as colocações fraseológicas, a evolução histórica e tantos etcéteras cabíveis, veremos facilmente como são ricas as palavras, e que interessantes coisas há por se descobrir nelas e sobre elas.
Estou definitivamente convencido de que se a elas nós dedicamos suficiente atenção, elas sempre retibuem lindamente.
As palavras, essa coisa tão vaga, tão relativa, tão imponderável, de certa forma nos enriquecem com uma grande fortuna, embora nem sempre traduzível na "outra", a tal fortuna atrás da qual tantos passam a vida a correr.
Mas pelo menos esta fortuna intangível não se desvaloriza nunca, pode-se repassá-la em vida e sem qualquer perda patrimonial, não se perde e não há quem nos possa tomar.
5 comentários:
Lindo e bem interessante.E o melhor, as palavras, quanto mais as acumularmos, mais enriquecemos e ninguém vai nos cobrar nenhum imposto por isso.
Um lindo domingo,e apesar desse desejo encerrar apenas três delas, abrange muito do que penso para ti!chica
Heeeeeeeee amigo, estava saudosa! O texto é excelente e veio a somar. Obrigada!
Beijos e meu carinho.
Palavras, palavras, se me desafias, aceito o combate, como disse Drummond.
Se eu sei o que significa Ich lieb dich, eu necessariamente não preciso saber de que língua se trata. Apenas o significado importa.
Agora, João, se eu posso aprender a falar alemão e tantas outras línguas desse mundo de 'meuDeus', aí a coisa se torna diferente...
E gostaria de fazer isso antes que a chamada civilização e a implacável evolução das línguas acabem por transformar tudo num gigante INTERNETÊS!!!
Credo, como diria a nossa querida LU.
Abraços mil.
O PODER DA PALAVRA!
Meu caro João, saiba que nossa casa de crônicas fica mais ilustre a partir de hoje, com essa aula sobre esse verbete, que nos dá infinitas possibilidades no giramundear de todas as línguas.
IMPECÁVEL TEXTO - como sempre.
ultrabeijos (do internetês).
Caro João
A sedução que encerram as palavras é irresistível, e ao partir-se para a semiologia, as abrangências são ainda mais infinitas e lindamente enriquecidas.
Cumprimentos!
Abraço
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