No Balcão do Quiosque

terça-feira, 28 de julho de 2009

A dura vida de um morto

Morri. E daí?E lá vou eu de novo. A história se repete mais e mais uma vez. Esse negócio de morrer já está ficando cada vez mais cansativo. O fato, é que certos padrões de acontecimentos em vida e em morte, se mantém, como se fosse a mesma partitura de uma música, só mudam os arranjos — ou desarranjos, sei lá. Será que isso não tem um meio de acabar de uma vez por todas? Quando penso nessa repetição de existências espaçadas, concluo que só pode ser reencarnação. Mas como posso ter certeza de uma afirmação dessas se não lembro de minha encarnação anterior? Mas, todas vez que eu morro, quando acho que vou viver o permanente, o eterno... pronto! Um profundo adormecimento me leva a esquecer de tudo o que se passou, e sou levado a morrer também depois que estou morto. Dá pra entender uma coisa dessas? Morro aqui e morro lá?

Observando a confusão que se estabelece em meio a corre-corres, lufa-lufas, comoções exacerbadas, burocracias desgastantes...depois de escolado por tantas idas e vindas, isso não me chateia mais. Que monotonia! A sensação é de que já nasço com a passagem de volta comprada. E ainda tenho que pagar por ela em vida. Nada é de graça mesmo.

Olhando aquele corpo estendido no chão (isso dá samba), inerte, pálido e azulado, não tenho a mínima intenção de tentar ressuscitá-lo. E pra quê? Deixa quieto. Parece uma roupa usada jogada no chão.

Tanta correria, tanta preocupação, e agora aí, duro que nem um boneco de corda (levando-se em conta que de certa forma esse era o meu estado normal quando “vivo”).

E o tal de velório então? Parece que jogaram gás lacrimogêneo no ambiente. Lamúrias, choramingos e choros compulsivos é regra de ordem do protocolo cerimonial. Ou teatral. Se eles soubessem como isso me chateia e perturba...Não sabem que não aconteceu nada? Eu só morri, gente!

Mas também morro de rir quando pego uns flagras de alguém num canto, contando piada, ou outro que não sabendo o que dizer ao parente do falecido aqui, em vez de falar “meus pêsames”, gagueja e solta um “felicidades”. Mas tudo bem, esse é o lado branco do humor negro.

O tal túnel de luz? Ah, de tanto fazer esse trajeto, durmo na viagem. Quando acordo, tô lá em meio à... como é mesmo? Ih, deu branco. Mas até onde me lembro, muita coisa já esqueci. E olha, vou dizer mais uma coisa: esse negócio de inferno e céu não é bem assim não. Está tudo aqui na nossa cabeça. Cabeça? Bem, seja lá onde for, o que eu quero dizer é que nós mesmos construímos, ou esse inferno, ou esse céu. A proporção está diretamente ligada ao grau de importância que damos a isso. E só se descobre isso depois de morto. Isso é que é ser burro, né?

Por isso que eu morro sempre e até hoje não descobri a fórmula certa. É por essas e outras que a gente tem que ser vivo. Não se deixar levar por qualquer tiri ti ti atemporal; como alguém, te metendo medo pelas coisas que você faz ou pelas que não faz. O céu e o inferno, está tudo aqui dentro, ó! Somos nós que construímos. É mais ou menos como construir a casa de seus sonhos: pode ser feliz em um barraco, ou infeliz em uma mansão.

Bem, pra quem já morreu, falei demais. Fui.Tchau, até a próxima...

7 comentários:

Paula Raposo disse...

Gostei imenso de te ler nesta morte natural. Beijos.

chica disse...

Eu acho que tu frequentas bastante velórios e sabes muito bem daquele ambiente. Por lá falam de tuuuuuuudo e tem gente que nem vai pelo menos dar um oizinho pro pobre "homenageado",rsrs. Muito legal e é muito bom te ler. Dá vontade de seguir em frente e ler mais...abração,tudo de bom,chica

Anônimo disse...

Leandro,adorei sua cronica!Bem humorada e criativa!Abraços,

Ramosforest.Environment disse...

Filosofia, humor (branco e negro!!), tudo encarnado em um corpo- digo, texto de primeira qualidade, que merece ir para o céu dos literatos.
Luiz Ramos

sueli schiavelli jabur disse...

muito legal mesmo, eta, defuntinho arretado, tem morto que fala bastante, não de aveche, bjs

João Esteves disse...

Eu gostaria de dizer que não é nada disso, Leandro, que o negócio é cultivar nosso jardim candidamente. Só que não dá. À Voltaire não dá mesmo. Só à Machado, Brascubando de leve, a concusão é inevitável: a vida é mesmo dura, até pros mortos. Tenho que concordar.
Seu personagem tem um enfado por assim dizer sartreano. e é pra menos?
Muito que bem!
Forte abraço.

☆Lu Cavichioli disse...

Genial, Soriano (como sempre).

A biblioteca do Leandro aqui no Quiosque, tá bombando. É gente pra todo lado, lendo a fantástica fábrica(que não é de chocolate), das mais revolucionários crônicas da literatura contemporanea rsrsrs...

Ah, e o comentário do João é sempre um aprendizado a mais.

Lu, escrevendo do salão Degradê.