No Balcão do Quiosque

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Infância Perdida I

Caros amigos.
Aproveitando o tema, tão bem abordado por nossa amiga Dulce, estou postando um texto que escrevi há muito tempo.
Quando o fiz, fiz sob o signo da saudade e talvez, devido a ela, eu tenha tido condições de descrever tão detalhadamente momentos tão difíceis, mas que no instante da escrita não mais me feriam.
Foi com a serenidade da saudade que consegui escrever esse texto e com ela estou postando aqui.

Infância Perdida I

Quando adentrei ao laboratório senti um cheiro cortante. Não havia ali cheiro de berço, talquinho, sabonetes infantis, sequer algo que lembrasse a delicadeza de um bebê.
Mas lá estava ele, mínimo, delicado e nu, deitado sobre uma bancada de mármore branco e gasto.
O ambiente contrastava com a fragilidade daquele pequeno ser que, desnudo, mostrava em quantos pedaços tinha sido dividido e de que maneira havia sido remontado, com grossa linha de cor bege.
Seu crânio foi cortado em dois, de orelha a orelha, seu pequeno peito de cima a baixo, do pescoço ao umbigo.
Mas minha missão era vesti-lo, e assim o fiz, com todo o cuidado para não machuca-lo. As roupinhas de nenê foram colocadas e no saquinho de dormir ele foi inserido.
Sério, sisudo, mas sem demonstrar mágoa.

E foi assim que segurei e embalei meu filho André, pela primeira e derradeira vez. Sem som, sem mimo, sem cantigas de ninar.

Não sei como suportei aquele momento. Só sei que ele passou e eu fui levado por ele.
Com certeza o dia estava nublado, o Sol não poderia estar brilhando. Mas também não estava chovendo, a chuva aproxima as pessoas dentro de casa.
Eu estava só, como nunca estive em toda a minha vida. Uma solidão de não enxergar a pessoa ao lado. De dirigir o carro sem saber como chegou ao destino. De parar no sinal vermelho mesmo sem tê-lo visto. De andar ao acender do sinal verde sem sequer saber que havia parado.

É estranho a forma de conviver com a morte de um filho querido.
É estranho entender como essa convivência foi suportada.

Deve haver alguma resposta, longe dos almanaques de cabeceira.

Marcos Santos

5 comentários:

UBIRAJARA COSTA JR disse...

Ah, Marcos, confesso que li seu texto entre lágrimas - de mãe, de avó, relembrando meus filhos e netos, pequeninos e cheios de vida... Sabendo que, por mais que tentasse, estava bem longe de imaginar o tamanho de sua dor, a imensa força de seu espírito, a tristeza de sua alma...
Receba meu abraço e meu carinho...

Leonel disse...

Impossível não sentir o impacto desta narrativa tão dura!
Mas, se você teve a coragem escreve-la e posta-la, isto deve significar que você já é capaz de encarar esta passagem tão dolorosa!
Não vou dizer superar, porque coisas assim nos acompanham para sempre.
Saudações!

R. R. Barcellos disse...

- Superação. É isso, não encontro outra palavra.
- Abraços.

Aída Továr disse...

Li o seu texto e fiquei sem palavras...Superação talvez.
Um beijo.

Anônimo disse...

=/